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sexta-feira, 15 de março de 2013

OS 'CARAS', NA VERDADE, SÃO POUCOS...



         Enquanto alguém, sobre ribalta de luxo e orquestra estridente, esgoela  “esse cara sou eu”, Noel, poeta de sublimes cantigas, murmurava numa simples mesa de bar, só com o seu violão:
                                            Quando o apito da fábrica de tecidos
                                            vem ferir os meus ouvidos
                                            eu me lembro de você...
Quem já ouviu o samba-canção Três Apitos, docemente modulado por  Nelson Gonçalves e não entendeu a diferença, nasceu prejudicado ou, sem perceber, perdeu a sensibilidade na enxurrada estupefaciente que a mídia solta para anestesiar os incautos. Não  à toa, os antigos afirmavam: “uns gostam os olhos, outros da remela”. Esconjurador de gosmas oculares, sempre inclinei para os olhos.
Três Apitos é a música mais sofrida do trovador de Vila Isabel. Encantado com uma operária da fábrica de tecidos, deixava o bar ao fim da madrugada para aguardar, nas imediações da fiação, a entrada do primeiro turno, quando a moça chegava. E doloridamente, palavras dele, tocava a buzina na esperança de um olhar da amada, surda aos seus chamados, “interessada em fingir que não me vê”. Haverá coisa mais simples e, no entanto, mais lírica, no reino indizível das senrenadas? (a serenada é muito mais romântica que a serenenata).
E o poeta dizia:
                               Você que atende ao apito
                               de uma chaminé de barro,
                               por que não atende ao grito, tão aflito,
                               da buzina do meu carro?
Inútil. Ela nem lhe respondia a pergunta. E ele ia para casa; e se achegava ao piano. Pobre Noel. Só lhe restava o teclado {muitos “entendidos” pensam que ele só tocava violão}. Então, mortiço nas teclas brancas e melancólico no negrume dos bemóis e sustenidos, contava à moça o que ela não sabia:
                               Enquanto você faz pano,
                               faço junto do piano
                               estes versos pra você...
 No que deu esse amor ninguém sabe. Mas a operária   certamente hoje falecida   que acorria aos apitos anunciadores do primeiro turno da tecelagem, pelo menos isso é certo, foi  responsável  por uma das mais lindas páginas da música nacional; melodia rica e delicada em  que  se engastam  versos de rara sensibilidade, embora singelos. Isso, lá pelas quatro da manhã, na mesinha alagada das marcas de copo, um resto de cachaça “da roça”,  meia cerveja que não espuma, um torresmo meio comido, mais um violão já claudicante nos semitons, é para não esquecer. Procurem-na no Google. Mas... atenção! ... cantada por Nelson Gonçalves. Ouçam. Depois digam  quem é o cara.  

É onde eu te falo...

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