Enquanto alguém, sobre ribalta de luxo e orquestra
estridente, esgoela “esse cara sou eu”,
Noel, poeta de sublimes cantigas, murmurava numa simples mesa de bar, só com o seu
violão:
Quando o
apito da fábrica de tecidos
vem
ferir os meus ouvidos
eu
me lembro de você...
Quem já
ouviu o samba-canção Três Apitos,
docemente modulado por Nelson Gonçalves
e não entendeu a diferença, nasceu prejudicado ou, sem perceber, perdeu a
sensibilidade na enxurrada estupefaciente que a mídia solta para anestesiar os
incautos. Não à toa, os antigos
afirmavam: “uns gostam os olhos, outros da remela”. Esconjurador de gosmas
oculares, sempre inclinei para os olhos.
Três Apitos é a música mais sofrida do
trovador de Vila Isabel. Encantado com uma operária da fábrica de tecidos, deixava
o bar ao fim da madrugada para aguardar, nas imediações da fiação, a entrada do
primeiro turno, quando a moça chegava. E doloridamente, palavras dele, tocava a
buzina na esperança de um olhar da amada, surda aos seus chamados, “interessada
em fingir que não me vê”. Haverá coisa mais simples e, no entanto, mais lírica,
no reino indizível das senrenadas? (a serenada é muito mais romântica que a serenenata).
E o poeta dizia:
Você que atende ao apito
de uma chaminé de
barro,
por
que não atende ao grito, tão aflito,
da
buzina do meu carro?
Inútil. Ela
nem lhe respondia a pergunta. E ele ia para casa; e se achegava ao piano. Pobre
Noel. Só lhe restava o teclado {muitos “entendidos” pensam que ele só tocava
violão}. Então, mortiço nas teclas brancas e melancólico no negrume dos bemóis e sustenidos, contava à moça o que ela não sabia:
Enquanto você faz pano,
faço
junto do piano
estes
versos pra você...
No que deu esse amor ninguém sabe. Mas a operária
– certamente hoje falecida – que
acorria aos apitos anunciadores do primeiro turno da tecelagem, pelo menos isso
é certo, foi responsável por uma das mais lindas páginas da música
nacional; melodia rica e delicada em que
se engastam versos de rara sensibilidade, embora singelos.
Isso, lá pelas quatro da manhã, na mesinha alagada das marcas de copo, um resto
de cachaça “da roça”, meia cerveja que não espuma, um torresmo meio comido, mais um violão já claudicante nos
semitons, é para não esquecer. Procurem-na no Google. Mas... atenção! ... cantada
por Nelson Gonçalves. Ouçam. Depois digam quem é o
cara.
É onde eu te falo...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Caso queira, faça contato direto por email: rubens2instancia@hotmail.com