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domingo, 19 de agosto de 2012

O BANQUETE EM VENEZA


       
               Assisti a um documentário sobre a comunidade selvagem dos babuínos da savana. Papagaio! Que bicho mais doido, aquele. Que agilidade ele tem e, em dose maior, que ferocidade! Depois, os dentes, terríveis, poderosos. Caninos enormes que rasgam a presa e a dela tiram pedaços num piscar de olhos. Deus me livre desses primatas irritadiços, de cara feia e bunda vermelha. De todo modo, pitorescos. E, devo dizer, evocativos. Afinal, os processos mentais são complexos e, nada estáticos, vagueiam pelo nosso arquivo de dados. Foi assim, suponho, que aqueles antropóides me lembraram um santo.
Um santo? Ora... Um babuíno, silvestre e rude, pode levar à recordação de um santo? Pois pode. Lembrei-me do medieval São Boaventura, ou Giavanni da Fidanza, da Ordem dos Frades Menores, luminar da Escolástica; consta que muito amigo de São Francisco de Assis. Explico o motivo dessa associação – aparentemente estranha. No entanto, fundada, segundo história que li, faz tempo. Ei-la:
É ali pela metade do Século XI. Veneza está em ebulição com os preparativos da grande festa à qual acorrem potentados e mercadores endinheirados. O Dodge Domenico Salvo se casa com a lindíssima princesa Teodora , filha de Constantino Ducas, o magnífico imperador de Bizâncio – reino encantado da hoje Turquia. A cosmopolita Veneza é rica e portentosa  metrópole que floresceu graças ao comércio internacional. No entanto, mesmo ela , a Pérola do Adriático fica pasmada ante a magnificência da comitiva bizantina.
( Os turcos, antigamente como hoje, eram altamente civilizados e, como tal, davam enorme importância às finesses . Eram irredutíveis no capítulo da higiene. Aliás, não se deve esquecer que o famoso “banho turco”, com vapores e perfumes, é... obviamente...  invenção turca. Portanto, se cuidar da higidez corporal era um hábito fundamental entre os bizantinos, não menor atenção eles davam à higiene na cozinha e à mesa. ) 
Quando entra na sala de banquetes do palazzo ducale , a linda Teodora causa ondas de frisson. Que beleza! Que pele! Que charme! Que perfume ela deixa no seu rastro! 
O banquete vai começar. Vinhos servidos, travessas e terrinas chegam à mesa. Brindes, vivas, palmas, se sucedem e ... acontece o desastre! Com um sinal onde rebrilham anéis e pulseiras na mãozinha mimosa, a noiva, princesa turca de fino traquejo social, chama a sua dama e lhe pede... o garfo de ouro!
Ah!!! Deus Santíssimo, o tridente de Satanás! Oh! Blasfêmia!  Anátema! Pecado! Vade retro , mulher gentia! Ímpia! Ela usa o tridente maligno para comer! Miserere  mei, Deus ! Longe de mim, pecadora! São Boaventura, o frade, esgoela maldições. Núncios e prelados fazem coro e alardeiam pragas. Uns de joelhos, outros de braços alçados clamam aos céus. Ritos  para exorcizar Satanás. Canadas de água benta são atiradas a esmo. O garfo de Teodora é um agravo irremissível ao Senhor!
Chovem insultos. Os convidados debandam, cheios de horror. Correria. Tropeções. Porcelanas se quebram. Ânforas de vinho se reviram sobre a mesa. Cristais viram frangalhos. Arrancam-se cortinas no espavento da retirada. Frutas e assados se espalham sobre os tapetes. Pandemônio. Os sinos de São Marcos tocam a rebate. E dobram finados depois. Nesse clima e ira e aflição a voz trovejante de São Boaventura, o  frade, pede a excomunhão da apóstata que celebra o Maligno ao comer. Partem  mensageiros. Roma entra em convulsão.
Mas antes que as autoridades eclesiásticas ditem os seus desairosos decretos contra o uso do garfo, a princesa morre, de repente. O frade agradece a intervenção divina, que baniu deste mundo a estrangeira infame. Então , no paroxismo da sua bem-aventurança, declara solenemente que a morte súbita de Teodora é  “ castigo de Deus ”... 
Suponho que a jurisprudência canônica da época preconizava que, sob pena de insurgência às leis divinas, para comer só se podiam usar mãos e dentes; garfo era coisa do Tinhoso. E fico a imaginar o frade escolástico brandindo uma perna de cordeiro e dela arrancando maçudos pedaços - com os dentes.
             
É onde eu te falo.   
             
           
           
             
           
        

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