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terça-feira, 26 de julho de 2011

FULÔ QUE NÃO TEM CHEIRO


Luiz Vieira, poeta de nordestinos cantares, é um cantador justo e perfeito. Bem que ele cansou de avisar, nos versos de “Na Asa do Vento: “o amor é bandoleiro, pode inté custá dinheiro, é fulô que não tem cheiro e todo mundo quer cheirar” - versos da canção que compôs com João do Vale.

A advertência do poeta foi passada e vem repisada, há anos, pelas ondas de Hertz; mas, acho, inutilmente. Apesar do aviso, ninguém deixou, nem deixa, de buscar pelo aroma da flor-sem-cheiro. É da natureza humana. É como na fábula antiga: o escorpião, querendo atravessar o rio, pede ao sapo que o leve nas costas até a outra margem. O sapo concorda. No meio do rio, o escorpião mete o ferrão no sapo, que pergunta: - E agora? Você não vê que nós dois vamos morrer? - Então o escorpião responde: - Não posso fazer nada; é a minha natureza...  

Pois é. Há coisas que não mudam, justamente por serem inevitáveis. Essas coisas, existem-nas também no mundo do vinho - aliás, solo muito propício ao cultivo de plantas inúteis que juntam o improvável à inutilidade. Alguém dirá: mas plantas assim são perfeitamente evitáveis, bastando que não se cultivem-nas. Uma afirmação lógica; que não consegue emplacar. Dou um exemplo, recorrente e significativo.

Sala cheia; convidados alegres brincam com as taças ainda vazias; mesas festivas, onde se consomem fatias de pão e azeite; jarra d’água à frente; alma em ponto de bala. Papilas gustativas e  narizes aguardam; olhos encantados não despregam da ribalta onde se perfilam os astros da noite, os vinhos escolhidos para prova e avaliação.

Serviço iniciado, gestos esotéricos, caras dramáticas, narinas se afogando no bojo dos cristais onde o vinho rodopia nos volteios de mãos habilidosas, bocas fazendo bico e até mastigações nem sempre virtuais, embora indevidas. Simbolismo ritualístico? Não. Suas excelências, os provadores de notória habilitação enológica, estão avaliando as propriedades organolépticas, físicas e químicas dos vinhos. Vinicultores e representantes de vinícolas torcem as mãos e se espremem nos próprios braços, inquietos, cheios de ânsia, porque Suas Excelências se mantêm impassíveis, sem dar o menor sinal das suas elevadas impressões. Mas a encenação não pode durar para sempre. Pronto! É hora de pronunciar o resultado de tão profundo exame.

Então, tcham-tcham-tcham-tcham! Voilá!  O hierofante provador se levanta; aguarda o silêncio geral; limpa a garganta; repuxa os punhos e arruma a gravata. Suspense. E ele proclama, na forma mais empostada que sua alta sabedoria exige: o vinho apresenta taninos elegantes!!!

- Ohhh! Que profundidade! Que raro descortino! Que facúndia! Jambo, Bwana! (*)

Bwana se senta, fingindo modéstia, mas dos seus olhos esguicham jatos de autoelogio. Está feliz e acha que merece passagens da Viking Airlines para Estocolmo, onde recolherá o Nobel de Literatura Enológica. Só não consegue traduzir com exatidão o que seriam “taninos elegantes”, já que o conceito de elegância nasce e vive no reino do subjetivismo. No fundo, Bwana sabe que o vinho pode conter taninos acanhados, taninos na proporção ideal ou taninos excessivos. Mas nunca dará a sua opinião em termos assim tão simples, porque ele, afinal, é um entendido de vasta fama e provador de largas travessias; um connaisseur, enfim.

Alguns convidados anotam a frase de Bwana para usá-la noutras oportunidades. E assim se cunha um dito que a comunidade enófila adotará para sempre: taninos elegantes entrará na linguagem coloquial e na pretensamente erudita, até que o Aurélio a consagre, por força do uso sistemático. No entanto, nem mesmo o prestigioso Dicionário poderá explicar, lexicamente (e gustativamente) o que são “taninos elegantes”.

Fazer o quê?  Esnobismo é fulô que não tem cheiro, mas todo mundo quer cheirar... É da natureza humana, né?  

É onde eu te falo...

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Vinho Verde, uma das glórias de Portugal

            Alguns dos vinhos verdes degustados


- Seja uma reta! - dizia o professor de Matemática, que traçava no quadro negro uma reta entre os pontos hipotéticos a e b. Aí o verbo “seja” não era dito na voz imperativa (ordem), mas no subjuntivo (proposição). A frase, pois, não era ordem ou conselho para que o aluno se transformasse numa reta, mas para que ele considerasse uma reta imaginária, relativamente à qual era proposto um problema – p. ex., traçar sobre ela uma linha perpendicular. Hoje os professores adotam métodos diferentes e um palavreado mais terra-terra, menos  acadêmico; até porque a moçada atual (que escreve “naum” em lugar de “não”) ficaria por entender.
            Ciente de que os meus leitores são gente de muita leitura, proponho-lhes: - Seja um bacalhau à Gomes de Sá!   
Essa iguaria celeste está no Restaurante do Porto; e você lá. Como o programa diz que lhe servirão vinhos verdes, você já está com a boca cheia d’água e a alma em festa. De repente ouve a voz carregada de Antonino Barbosa, português de longo curso e rápidos falares, que lhe apresenta as suas estrelas da noite: dois Muralhas de Monção, um Adega de Monção e um Rosé Deu La Deu. Todos em Belo Horizonte representados por Carlos Pereira, da Barrinhas (31)3287.0580.  
O branco Adega de Monção DOC, leve como deve ser um verdinho branco para o verão, tem certa presença gasosa, notada no colar de bolhas que brincam na orla. Combinação muito agradável de Alvarinho e Trajadura, meio a meio. Ótimo para abrir uma boa vinhaça noite a fora, quem sabe? Segue o, também branco, Muralhas de Monção DOC, das mesmas uvas. Superior ao antecedente, um vinho que surpreende. 85% Alvarinho e 15% Trajadura, é fresco de acidez convincente, traz marcantes notas cítricas e de frutas secas. Nessa altura você já decidiu que a noite será de “vinhaça forte”, como diria de Eça, veemente arauto dos verdes portugueses.
O terceiro vinho, Rosé Muralhas, é mais simples. Combina Alvarelhão, Pedral e Vinhão, à terça. É ligeiro na boca e um tanto vago ao nariz, mas encanta os olhos pela cor de salmão (das águas européias, não do litoral chileno), como se fora um palhete esbatido. De toda forma, lava a boca para chegada do mais esperado da noite: o tinto Adega de Monção. Com predomínio das uvas Brancelho, Pedral e Negrão, já recebeu o prêmio Mega Degustação Gula 2007. Tem ótimo equilíbrio entre a digital alcoólica e a acidez natural das uvas. É um vinho sério; bem imponente; encorpado, porém macio. Caiu lindamente – também como diria o Eça – com o bacalhau.
Pois é. O vinho verde, uma das glórias de Portugal, sempre traz satisfação e bem estar. Quem o diz, com a propriedade do conhecedor e aliado fiel, é ninguém menos que o magnífico escritor da Povoa do Varzim. Raro é o livro dele sem referência aos verdinhos lusitanos. Então, se a grana anda curta para atravessar o Atlântico, eis uma boa variante: ponha à mesa lascas grossas de bacalhau a nadar no azeite, leia (ou releia) A Ilustre Casa de Ramires e, para cada página que virar, beba um gole de vinho verde. Pronto! Você já está em Portugal.
É onde eu te falo...        
Antonino Barbosa - Presidente da Adega de Monção

sexta-feira, 8 de julho de 2011

BAILINHO APIMENTADO


Servi na Legião Estrangeira como corneteiro do forte Trésor de Sable, comandado pelo Capitão Valéry Giscard d’Estaing. Como, além do comandante, a guarnição se resumisse a mim (o resto  morrera de amargura e disenteria) cabia-me também o posto de vigia na torre sul do forte.

Quando o sheik Farraj Al-Mouffa’ada, notório combatente do colonialismo francês, sitiou  Trésor de Sable com mil beduínos ferozes, o capitão se evadiu disfarçado em encantador de serpentes e foi assumir o governo da França. O forte virou escombros; ficou de pé somente a torre do lado sul, onde Al-Mouffa’ada dependurou a sua bandeira azul celeste, na qual reinava um camelo escarlate com um sabre ismaelita entre os dentes. Quanto a mim, desertei, no rastro de providencial tempestade de areia; coberto de graxa marrom para calçados e alguns trapos sujos; escapuli passando por vendedor de água.

Tirante as durezas do clima, foi um tempo de grande proveito. Aprendi muito sobre a cultura local, inclusive da culinária. Aliás, tenho ainda um tagine de cerâmica vidrada que me deu o Capitão Giscard como parte nos despojos de um oásis que a Legião arrasara. Nesse tagine cozinham-se sobre brasas belos pedaços de carneiro e legumes, prato excelente para se comer com cuscus e chá de hortelã - lá, em terras de Allah, porque aqui bebo vinho mesmo.    

Mais aprendi no meu tempo de legionário: o capitão era um sujeito de vasta cultura; e, dado a insônias recorrentes, passava noites inteiras na minha torre. Nessas ocasiões ele levava duas ou três garrafas de pinot noir, que bebia sozinho, já que um sentinela não bebe. Ali conversávamos até o toque de alvorada, depois do que eu ia dormir e ele subia para o seu cavalo árabe, o fogoso Sheitan, e galopava até o sol ficar intolerável. A propósito, Sheitan, em língua de beduíno, é o próprio Capeta, razão pela qual os do deserto a ele se referem como “o maligno”.

Mas o capitão, eu dizia, era um homem sábio (Allah, porém, é mais sábio!). Giscard estudava coisas e ciências, entendia de arte; além de perfumista, antropólogo, grande cozinheiro e perigoso espadachim, era druida honorário, donde sua intimidade com os saberes secretos. Foi ele, M’sieur le Capitain, que me instruiu sobre a origem da esbórnia festiva  que o mundo conhece por “ménage à trois” - um festival de alcova, triangular, no qual tomam parte um homem e duas mulheres, na modalidade original; consta outra forma, com dois homens e uma mulher, mas essa não é regimental.

Pois eu achava que a ménage à trois era uma invenção francesa. Corrigiu-me o capitão:

- Oh, mais non! Absolument!  - e confirmou que esse divertissement sexuel é uma invenção hebraica!

- Como hebraica? Não me consta que...

- Oui! C’est une invention hebraïque, mon cher… - e contou a história: Loth juntou a mulher e as duas filhas, com quem abandonou as terras pecaminosas do Mar Morto. A mulher de Loth (tentada pelo Sheitan hebreu) queria porque queria participar dos bailinhos apimentados de Sodoma e Gomorra. Horrorizado, Loth decidiu levar família pra longe daqueles ermos de perdição. Aliás, foi nas beiras do Mar Morto que a mulher de Loth desistiu da viagem e do marido: decidiu se transformar em estátua de sal, destino, segundo ela, melhor do que acompanhar o velho ortodoxo com quem se casara. Viúvo, Loth seguiu estrada. Lá um dia, no desconsolo da solidão, emborcou um odre de vinho estragado e enfoguetou: levou para a cama as duas filhas; ao mesmo tempo! Curiosamente, na mesma noite emprenhou-as; ambas...

Quando eu falei na implausibilidade dessa dupla fecundação sincronizada, o capitão me advertiu que Loth recebera ordem superior para acochar as filhas naquela noite fértil, porque era preciso que nascessem Amon e Moab, que dariam origem a amonitas e moabitas, povos bravios que fariam frente aos hebreus de Móisés na corrida para Canaã.

- Então foi isso! Uma história deveras...

- Extraordinaire! - completou o capitão, chupando o último pinot noir no gargalo.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

D. Dilma e os desconformes lingüísticos

Dona Dilma preside. No descostume de ver a República governada por mulher, o povo embasbacou num impasse nominativo: como se referir a ela, presidente ou presidenta? Santo Deus, que dilema!
Dividiram-se as preferências; nas ruas, na imprensa, em lares e bares: Presidente Dilma e Presidenta Dilma. Até gramáticos referendaram a forma “presidenta”, condenada por muitos deles; o douto Aurélio informa que presidenta pode ser aquela que preside como pode ser a... mulher do presidente. Cruz credo! Eu nem sabia que D. Marisa Lula da Silva era presidenta do Brasil!
Querem saber? Por mim D. Dilma pode ser o que quiser; ou melhor, podem-na chamar como quiserem. Só acho que citá-la em razão do cargo no gênero feminino pode criar impasses e desconformes lingüísticos.
Mas, D. Dilma é residenta em Brasília? É descendenta de europeus? Quando acuada pela base aliada fica impacienta, ou é uma ouvinta toleranta? Não sei. Só sei que dói no ouvido dizê-la votanta naquela Seção Eleitoral, é ouvinta atenciosa, fica eleganta num tailleur bem cortado e é contribuinta do Fisco Da União. Ah, segundo a Coinstituição Federsal, ela é a comandanta suprema das Forças Armadas.
Pobre D. Dilma...