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quinta-feira, 17 de setembro de 2015



                                                       
                                                    MARLENICE, PADEIRA E CONFEITEIRA


   Rubens Adalberto

                Marlenice de Souza, a uma semana de se tornar sexagenária, concluiu, não sem desgosto, que sua solteirice era eterna. Costureira de cidade pequena, de escassas rendas e naquela idade, só por milagre cingiria a grinalda das noivas, numa época de também escassos milagres. Com refrigerante de guaraná e um pavê encomendado à padaria do Lucas, comemorou modestamente os sessenta entre as poucas amigas mais o padre local, sujeito doido por doces, de rara cultura humanística e nem tão acentuadas crenças.
Semana depois acordou antes da alvorada em transe místico, afogada numa vaga de misticismo delirante: percebera que tinha vocação... eclesiástica! Padre Cunha tratou de desiludi-la, mostrando-lhe que o ofício sacerdotal era privativo dos padres ordenados e, pois, vedado às mulheres. Merlenice, sem se convencer, fez que aceitou as ponderações de Cunha. Dias mais tarde, voltou à casa paroquial. Queria saber se não havia, nas celebrações eclesiais, qualquer atividade que não lhe fosse defesa, uma coadjutoria, um serviço auxiliar que a tornasse mais próxima dos Santos Mistérios.
Isso aconteceu quando Roma   percebendo que perdia terreno para os evangélicos    quebrou o rígido protocolo das celebrações litúrgicas, e distribuiu entre seu rebanho formosas funções religiosas, entre elas a de “ministro da eucaristia” – leigo autorizado a portar o cálice bento e distribuir a hóstia consagrada aos fiéis. Marlenice, extasiada, foi candidata de primeira hora, logo aceita pelo padre, até mesmo para se livrar das suas recorrentes e cada vez mais agressivas investidas contra o organograma eclesiástico.
Custou ao padre convencê-la de que casula, estola  e outros itens eram alfaias privativas dos padres. Mas em casa ela cortou, costurou e adornou em rendas, brocados e passamanes as suas próprias vestimentas rituais – que não usava em público, mas reservadamente vestia para as suas intermináveis dedicações religiosas pessoais. E era uma enfiada de rosários, novenas, recitações de antífonas e jaculatórias, cantares de louvor e tudo o mais que a boa adoração encerra. Marlenice inventou rezas, compôs cantigas e louvaminhas dedicadas a santos, que distribuía na cidade em folhas pautadas com seu cursivo arrebicado.
Em breve se tornou oráculo e dispensária de choramingos e petitórios dirigidos aos céus. Desde que, supostamente a poder deles, salvou a mulher do Lucas Padeiro, que por pouco não morre com um caroço de manga ubá parado na garganta, ficou famosa a sua reza contra engasgo e entalação, que Marlenice inventou na hora, invocando Santa Águeda; igualmente muito acatados eram seu pronunciamentos contra caspa e desorientação puerperal.  Mas ela era seletiva. Não intervinha em qualquer situação. Mané Carvoeiro debalde lhe pediu cura para a “gota militar” que adquirira nalgum puteiro.   Marlenice o repeliu: não curava moléstia contraída em pecado!   
Aguardava com ânsia a missa dominical da 9,00 horas, quando distribuía a comunhão e zanzava enfatuada junto ao padre, arrumando a dobra de uma toalha ou uma flor que lhe parecia desgarrada. Com o tempo passou a interromper o padre e fazia prédicas sobre a consubstanciação, se metia a escolher a homilia dominical ou declamava coisas alusivas ao ofertório, tudo entremeado de expressões sem nexo num Latim estropiado. Padre Cunha andava desesperado. Nem mesmo a missa das 6 horas ele podia rezar em sossego. Duas ou três velhas quietas compareciam às missas dos dias de semana. Mesmo assim Cunha as antecipou para as 5 e com a igreja vazia, esteve em paz.  Mas as demasias de Marlenice continuaram.  Um dia ela arrebatou o cálice do padre e queria porque queria aplicar-lhe, a ele, a santa comunhão! Marlenice endoidava; sua religiosidade desandou em severo caso patológico.  
No primeiro domingo do avento a coisa transbordou. Antes da comunhão Marlenice se esquivou para a sacristia e vestiu-se de padre. Voltou ao altar com alva, cíngulo, estola e casula que fizera, todos os paramentos em roxo de advento, segundo o preceito.
Abriu o sacrário e dele retirou o cálice, que ficou segurando à borda da mesa de comunhão, desorientando os fiéis. Nesse dia Padre Cunha perdeu a tramontana e a expulsou da igreja, na mesma veemência e mesma ferocidade com que Adão e Eva foram santamente evacuados do Éden. Foi aí que a gota faltante caiu no copo prestes a transbordar.
   Dali Marlenice se dirigiu à padaria do Lucas. Aos domingos, finda a missa, a padaria virava um enxame de gente. Lucas, além de mestre padeiro, era confeiteiro de sublimes dotes. Aos seus pães dourados, de craquelé sugestivo e massa perfeita, se somavam bolos, roscas-darainha, pães de queijo, brevidades, broas, croissants, biscoitos e tudo o mais dessa arte inefável,  inclusive folhados, tortas e pudins, que o povo disputava para quebrar o jejum após a missa. Pois ali, com os seus paramentos sacerdotais, entrou Marlenice. Trazia os olhos vidrados, o semblante alterado do transe incontido. E desandou, a traçar cruzes no ar, “consagrando” quantos pães e quitandas via nas prateleiras abarrotadas, esgoelando latinórios incongruentes:
... Ite missa est... ecce lucem tua... sursum corda... coelum fit Panis... si vis pacem para bellum... roma locuta causa finita... cogitus cogitatus... e coisas assim.  Lucas, apalermado, não sabia o que fazer. Parar a coisa? Mas... Ora, aquilo parecia coisa santa, inda mais com  paramentos coloridos, latins consagradores. Sabe-se lá que reza é essa? E se fosse pecado ou insubordinação deter as expensões sagradas da Marlenice? Contrariar a Igreja? Nem pensar. Melhor deixar assim. E ela lá, cada vez mais destrambelhada, no afã de consagrar o “panis engelicus”. Assim fora o povo encontrar a padaria e embasbacou.
Ninguém deixaria de fazer as suas compras de domingo só porque elas estavam sendo abençoadas. Melhor que as artes do Lucas fossem sagradas pelos céus, se já eram tão deliciosas sem esse procedimento. Alguém, mordendo um sonho, gritou  Lucas jamais havia dado a ele um sabor tão maravilhoso... Depois, a textura, a cor... O “açuquinha” da rosca se dissolvia na boca! O farelo do pão-de-coco, que maciez e sabor! As passas das roscas devem ser importadas...Ah, são! Pronto! O poder da sugestão costuma ser irresistível quando exercido coletivamente. Como ocorreu. Todos abriram imediatamente os seus pacotes ali mesmo, arrancando pedaços aos produtos que haviam comprado, a fim de prová-los e comprovar a excelência deles. A comprovação foi imediata. Milagre? Toque do dedinho das fadas? Pouco importava. Tudo ali, era voz corrente, se tinha antes gosto das mesas dos reis, agora tinha sabores de festejos divinais.
Padre Cunha, cético, não dava trela ao que julgava crendice. Para ele tanto fazia. Até que um dia provou o pão de torresmo.  Santo Deus! Que era aquilo? O mesmo sentimento, em grau superlativo, lhe veio ao degustar um mil-folhas com creme patissière: - Gente! Isso não existe! Ou sugestão também tomou conta de mim? Bom, que seja! Tanto melhor... 
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Marlenice deixou as suas funções na igreja. Empregou-se com boa renda na padaria, onde exercia a raríssima função de aprimorar aparências, perfumes e sabores das coisas que Lucas assava com esmero. Ela tinha o dom e aproveitou os ensinamentos de Lucas ao ponto de superá-lo. Este, já velho, largou o estabelecimento por conta da consagradora, e legou a Marlenice, por testamento, o respectivo fundo de comércio. O nome da casa foi mudado; virou “Chez Marlenice Boulangerie-Pâtisserie”, denominação idealizada por ela, que o padre verteu para o Francês. Marlenice. Seu ofício de consagradora foi aperfeiçoado com extensas frases colhidas a êsmo de textos latinos de Horácio e Santo Agostinho achados na biblioteca do padre. O Latim dela, antes estropiado, era agora mais desfigurado e ininteligível.
Na inauguração do novo estabelecimento Padre Cunha cortou a fita simbólica e benzeu as instalações. Por ele, àquela altura velho e  livre-pensador irredutível, nada a opor: se as “consagrações” de Marlenice, verdadeiramente ou não, tornava seus pães e bolos tão  especiais, que assim fosse. Afinal, como disse o inglês em Hamlet, há mais coisas entre o Céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia...
Quando o bispo foi visitá-lo, Padre Cunha foi pessoalmente encomendar a Marlenice um vasto sortimento de guloseimas. E chamando-a de lado, cochichou:
- Marlenice, êh... Bom... Quero dizer...  Ora, só aqui entre nós... e que ninguém saiba... mas você me faria o favor de consagrar a minha encomenda duas vezes? Três, talvez?
Também o bispo confessou que jamais havia provado coisa igual. Nem na mesa do Papa. Na verdade, disse, nem sabia que produtos de padaria e confeitaria podiam ser de tal modo deliciosos. - Absolutamente divinos, completou... 

                           F I M


(*) O autor adota a ortografia anterior, desprezando o vigente Acordo Ortográfico