Lina da
Venda, como se conhecia Bertolina Maltagliata, não era dona da venda. O pequeno
armazém era do pai, filho de colonos que deixaram o Veneto nos fins do Século
XIX. Encostado por conta de mijacão deformante, o vendeiro Oreste Maltagliato
delegou os quefazeres do comércio a Lina, que virou Lina da Venda. Assim e como cismasse um vago parentesco com Santa Catarina de Siena, tornou-se uma beata irredutível, daquelas que comem e bebem milagres e divindades, encharcada de uma religiosidade a todos os títulos patológica. Até na venda.
Lá, enfeitava paredes e prateleiras com santinhos, cópias de orações a isso e àquilo, cruzes e imagens, os
quais louvava melosa e demoradamente quando a vendinha estava vazia e antes de aviar
os pedidos da freguesia. Um quilo de café?, dois quilos de fubá?, meio quilo de
cebolas? – sim, ela tinha; só que antes de entregar a mercadoria ao freguês,
este era instado a rezar com ela; conforme a lua, era obrigado a cantar
ladainhas e “oremus” - o cliente, constrangido, meio em bocca chiusa, ela aos berros. Enfim, era a única venda do lugar; fazer
o quê?
Com o tempo o fervor religioso da Lina não se limitava às
quatro paredes da vendinha, mas voava aos quatro ventos; em casa, na rua, nas
casas que visitava e, claro – agora em tremeliques repicados – na igreja. E numa
rezação sem fim, a cantoria desenfreada, Lina só dava descanso à boca quando
dormia. Mas nem sempre: durante o sono vinham-lhe querubins e serafins,
vestidos de rosicler, surgidos em meio às névoas da madrugada, com quais ela
rezava e cantava as costumeiras latomias. Eventualmente, era freqüentada por
íncubos, seres noturnos que lhe vinham acochar; nessas noites o sonho virava
pesadelo, ela se debatendo entre o horror à luxúria e os reclamos da tesão,
para depois se acasalar com o ente maligno, uivando no embate do coito
enfezado. Aí seus cantos eram os do orgasmo copioso, berrados em meio a
grunhidos arfantes e rilhar de dentes.
O padre local, a pedido família,
dos moradores da vila e por si mesmo, tentara, sem êxito, aplacar-lhe o furor
religioso: – Baixa o facho, Lina! Exageros não são do plano de Deus! Exageros
viram manias e manias deságuam em doenças, algumas sem cura – ele aconselhava.
Quá! Cada manhã Lina cada dia surgia mais dominada. Acabou que na igreja, era como se
fosse uma sacerdotisa tresloucada. Escolhia os cânticos, entrecortava os
ofícios berrando hosanas e aleluias, inventava ritos e desautorizava o padre,
intervindo-lhe nos sermões para encaixar coisas que lhe pareciam de alto fervor. Ousava
cantar num Latim macarrônico, com especial devoção lingüística quando dava de
entoar o Tantum Ergo no kyrie ou o Ave
Verum Corpus na homilia, subvertendo a liturgia. Chegou ao cúmulo de, em
tarde de fervoroso Te Deum, interromper as rezas para situar Maria Madalena
como esposa de Calígula e proclamar Cleópatra a “a maior felatriz de Sodoma”. Decididamente, Lina endoidava a olhos vistos.
Corria o Advento. Lina, nas
agruras do climatério, surtou: deu de, ela sozinha, fazer a cena da Natividade.
Arranjou vestimentas de todos os figurantes, os quais ela mesma representaria. Trocava-se na sacristia e voltava ao presépio armado no altar,
ora vestida de Maria, ora com a túnica de José, ora com os ornatos dos Magos,
às vezes fantasiada de ovelha, vaca e burro. Até que, sendo o Menino Jesus,
entrou no presépio vestindo apenas fraldas e uma camisa-de-pagão. Foi um rebuliço
infernal, inclusive porque os homens puderam ver, pela vez primeira, as coxas da Lina
e vislumbrar-lhe os contornos peitorais, que, embora caídos, fizeram sucesso. No
pandemônio, o padre desmaiou.
Passada essa fase, Lina ficou impregnada dos mistérios da transubstanciação. Cismou de consagrar as hóstias. Aí o padre embicou. E explodiu: dela tolerara tudo,
compreendendo-lhe a enfermidade, para evitar a cizânia (na verdade temia perder
as gordas espórtulas que lhe dava Oreste Maltagliato, que, indiretamente,
subvencionava os desmandos devocionais da filha). Mas Lina ultrapassara os
limites: Chega, sua maluca! Consagrar é ato privativo do padre, entendeu? Espumando
raivas, ameaçou excomungá-la. E, prevendo desatinos futuros, pediu e obteve da
Cúria um interdictum prohibitorium
que a impedia de entrar na igreja. Aí, justamente, Lina chegou à demência absoluta.
Então, para se vingar do padre
que não lhe queria conceder o privilégio de consagrar hóstias, desandou a
consagrar quanto se fazia de farinha e fermentos. Entrava nas casas e
consagrava pão velho, resto de broa, bolachas, o que encontrasse. Quando o
povo, amedrontado, lhe cerrou as portas, Lina invadiu a padaria da vila e
consagrou quatro cestos de pão francês, 29 baguetes e 18 roscas-da-rainha, sem
contar as fornadas inteiras de pão-de-queijo, quebra-quebra, rosquinha de
amoníaco, biscoito de polvilho e brevidades. Preventivamente, consagrou até
massa posta a levedar. E, como era tempo de Natal, consagrou 33 panetones!
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Lina, hoje agnóstica,
está internada em nosocômio na Região das Vertentes; ainda. Abandonou a idéia de ser
sacerdotisa e virou livre-pensadora. Expulsou também os querubins e os serafins
da noite. E, na sua cabeça, se casou com Asmodeus, a quem trai com dois ou três íncubos sacanetas.
É onde eu te falo...
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