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sábado, 22 de dezembro de 2012

A FERVOROSA (um conto, para variar)



            Lina da Venda, como se conhecia Bertolina Maltagliata, não era dona da venda. O pequeno armazém era do pai, filho de colonos que deixaram o Veneto nos fins do Século XIX. Encostado por conta de mijacão deformante, o vendeiro Oreste Maltagliato delegou os quefazeres do comércio a Lina, que virou Lina da Venda. Assim e como cismasse um vago parentesco com  Santa Catarina de Siena, tornou-se uma beata irredutível, daquelas que comem e bebem milagres e divindades, encharcada de uma religiosidade a todos os títulos patológica. Até na venda.
             Lá, enfeitava paredes e prateleiras com santinhos, cópias de orações a isso e àquilo, cruzes e imagens, os quais louvava melosa e demoradamente quando a vendinha estava vazia e antes de aviar os pedidos da freguesia. Um quilo de café?, dois quilos de fubá?, meio quilo de cebolas? – sim, ela tinha; só que antes de entregar a mercadoria ao freguês, este era instado a rezar com ela; conforme a lua, era obrigado a cantar ladainhas e “oremus” - o cliente, constrangido, meio em bocca chiusa, ela aos berros. Enfim, era a única venda do lugar; fazer o quê?
            Com o tempo o fervor religioso da Lina não se limitava às quatro paredes da vendinha, mas voava aos quatro ventos; em casa, na rua, nas casas que visitava e, claro – agora em tremeliques repicados – na igreja. E numa rezação sem fim, a cantoria desenfreada, Lina só dava descanso à boca quando dormia. Mas nem sempre: durante o sono vinham-lhe querubins e serafins, vestidos de rosicler, surgidos em meio às névoas da madrugada, com quais ela rezava e cantava as costumeiras latomias. Eventualmente, era freqüentada por íncubos, seres noturnos que lhe vinham acochar; nessas noites o sonho virava pesadelo, ela se debatendo entre o horror à luxúria e os reclamos da tesão, para depois se acasalar com o ente maligno, uivando no embate do coito enfezado. Aí seus cantos eram os do orgasmo copioso, berrados em meio a grunhidos arfantes e rilhar de dentes.   
O padre local, a pedido família, dos moradores da vila e por si mesmo, tentara, sem êxito, aplacar-lhe o furor religioso: – Baixa o facho, Lina! Exageros não são do plano de Deus! Exageros viram manias e manias deságuam em doenças, algumas sem cura – ele aconselhava. Quá! Cada manhã Lina cada dia surgia mais dominada. Acabou que na igreja, era como se fosse uma sacerdotisa tresloucada. Escolhia os cânticos, entrecortava os ofícios berrando hosanas e aleluias, inventava ritos e desautorizava o padre, intervindo-lhe nos sermões para encaixar coisas que lhe pareciam de alto fervor. Ousava cantar num Latim macarrônico, com especial devoção lingüística quando dava de entoar o Tantum Ergo no kyrie  ou o Ave Verum Corpus na homilia, subvertendo a liturgia. Chegou ao cúmulo de, em tarde de fervoroso Te Deum, interromper as rezas para situar Maria Madalena como esposa de Calígula e proclamar Cleópatra a “a maior felatriz  de Sodoma”. Decididamente, Lina endoidava a olhos vistos.
Corria o Advento. Lina, nas agruras do climatério, surtou: deu de, ela sozinha, fazer a cena da Natividade. Arranjou vestimentas de todos os figurantes, os quais ela mesma representaria. Trocava-se na sacristia e voltava ao presépio armado no altar, ora vestida de Maria, ora com a túnica de José, ora com os ornatos dos Magos, às vezes fantasiada de ovelha, vaca e burro. Até que, sendo o Menino Jesus, entrou no presépio vestindo apenas fraldas e uma camisa-de-pagão. Foi um rebuliço infernal, inclusive porque os homens puderam ver, pela vez primeira, as coxas da Lina e vislumbrar-lhe os contornos peitorais, que, embora caídos, fizeram sucesso. No pandemônio, o padre desmaiou.
  Passada essa fase, Lina ficou impregnada dos mistérios da transubstanciação. Cismou de consagrar as hóstias. Aí o padre embicou. E explodiu: dela tolerara tudo, compreendendo-lhe a enfermidade, para evitar a cizânia (na verdade temia perder as gordas espórtulas que lhe dava Oreste Maltagliato, que, indiretamente, subvencionava os desmandos devocionais da filha). Mas Lina ultrapassara os limites: Chega, sua maluca!  Consagrar é ato privativo do padre, entendeu? Espumando raivas, ameaçou excomungá-la. E, prevendo desatinos futuros, pediu e obteve da Cúria um interdictum prohibitorium  que a impedia de entrar na igreja. Aí, justamente, Lina chegou à demência absoluta.
Então, para se vingar do padre que não lhe queria conceder o privilégio de consagrar hóstias, desandou a consagrar quanto se fazia de farinha e fermentos. Entrava nas casas e consagrava pão velho, resto de broa, bolachas, o que encontrasse. Quando o povo, amedrontado, lhe cerrou as portas, Lina invadiu a padaria da vila e consagrou quatro cestos de pão francês, 29 baguetes e 18 roscas-da-rainha, sem contar as fornadas inteiras de pão-de-queijo, quebra-quebra, rosquinha de amoníaco, biscoito de polvilho e brevidades. Preventivamente, consagrou até massa posta a levedar. E, como era tempo de Natal, consagrou 33 panetones!
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            Lina, hoje agnóstica, está internada em nosocômio na Região das Vertentes; ainda. Abandonou a idéia de ser sacerdotisa e virou livre-pensadora. Expulsou também os querubins e os serafins da noite. E, na sua cabeça, se casou com Asmodeus, a quem trai com dois ou três íncubos sacanetas.

É onde eu te falo...     

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