Pode-se ler o Velho Testamento de
dois modos: com olhos de crente religioso pautado na Revelação; como leitor que
apenas quer ler. Aquele o considera um livro sagrado, ditado por Deus, conforme
a sua crença; este o lê como obra literária. Ou seja, cada um tem a sua
motivação, personalíssima. Por mim, considero que ler as Escrituras com a visão
específica do sobrenatural desperdiça-lhe a parte não-sobrenatural; um
reducionismo. Já aquele, digamos, não-alinhado, que as lê com olhos de simples
leitor, que se fixa na história humana ali narrada, tem enorme proveito
intelectual.
Seja como for, o Velho Testamento
tem o poder de fascinar quem o lê. Nem o curso do tempo, contado em milênios,
conseguiu atenuar o seu encanto - independente do espírito de quem o lê:
religiosos, em razão de fé; gentios e livre-pensadores, tomando-as como resenha
de uma época ou momento histórico, que contém dados sociológicos, legais,
antropológicos, geográficos... enfim, um monumento de amplo espectro. Seja como
for, as Velhas Escrituras agradam a todos.
Vamos ao
aparecimento de Moisés em Gêneses, visto por um não-alinhado. Ali consta que ele
era levita da gema, filho de Amram, e sua mulher Yocabed; e que esta, vendo que
seu bebê era muito formoso, escondeu-o por três meses, até que a situação ficou
insustentável. Assim, colocou-o num cestinho de vime que deitou nos juncos à
beira do rio (Nilo) e mandou que sua filha observasse o que aconteceria. A
pequena viu que a filha do faraó, que descera para se lavar no rio, acolheu o
bebê e o entregou a uma hebréia a quem pagou para dele cuidar. Anos depois a tal
filha do faraó o adotou.
Inverossímil a
mais não poder. Primeiro, que mãe abandona o filho de peito num rio apenas porque ele é formoso? Tirante a
fugidia hipótese de um transtorno puerperal, não há explicação para a atitude
de Yocabed. No entanto, os obstetras não apontam precedente de febre do
puerpério que dure três meses, idade do pequeno Moshe abandonado no rio.
Depois, é
inaceitável a filha do faraó tomando banho no Nilo. Os egípcios eram o povo
adiantado, dotado de extraordinário senso estético; preocupados com a beleza
física, detinham tecnologia própria de
fabricar sabões e cosméticos. Um povo assim
teria severos hábitos higiênicos. Aliás, a comunidade arqueológica divulga que
os egípcios mais abastados tinham mesmo um sistema doméstico de filtrar água em
tanques comunicantes, cada tanque contendo um elemento filtrante de granulação
variada - que ia da brita à areia mais fina, de modo que a água depositava no
primeiro tanque as impurezas mais grossas, e assim sucessivamente, até escoar
límpida do último.
É óbvio, pois:
se as casas das famílias ricas eram munidas desse sistema de filtragem, com
mais razão o teria o palácio do faraó. Então, por que a filha do Rei dos Dois
Egitos, ela, justamente, faria semicúpios no rio? É difícil imaginar a filha do faraó passando
largos tempos sem banho, durante a estação das cheias do Nilo, que encharcavam
de húmus suas margens numa extensão considerável; ou admitir que na época da
inundação anual a gentil princesa se banhava na barrela, que – embora altamente
fertilizante, ou talvez por isso – devia ser muito fedorenta.
O bebê hebreu
no bercinho de junco, com cueiros de riscas à levita e posto nas águas do Nilo,
tão lírica e convenientemente recolhido pela filha do faraó, se apresenta, pela
própria inverossimilhança, como um simbolismo primariamente singelo: os seres
vivos vêem da água; sem água não há vida. Fora disso não se encontra motivo
plausível para a filha do faraó, ao invés de se banhar “posta em sossego” nas
piscinas cristalinas do palácio, o fizesse diretamente no rio bruto entre
pernilongos e crocodilos, lodos, e até as nada implausíveis sobras intestinais
jogadas a montante.
Daí a minha
opinião: Moshe, o famoso Moisés do Êxodo, podia ser filho do levita Amram, mas
não nascido de Yocabed; era filho da princesa, e, pois, neto do faraó. Este,
segundo a opinião majoritária de historiadores, arqueólogos e egiptólogos,
seria Seti I, o sábio, pai do famoso Ramsés II, da 19ª. Dinastia.
É onde eu te
falo...
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