Páginas

domingo, 19 de agosto de 2012

A ARTE DE SAM PECKINPAH


             Assisti hoje, acho que pela quinta ou sexta vez, ao filme “Meu ódio será tua herança”, dirigido pelo genial Sam Peckinpah, estrelado por Willian Holden, Ernest Borgnine, Robert Ryan e outros atores famosos, dentre eles as metralhadoras Gatling (ou seriam Browning?), muito eficientes na arte de estraçalhar.
Peckinpah modificou o modo de contar histórias do western. Deixou o nenhenhém romântico centrado no maniqueísmo cediço - “mocinho/mocinha versus  bandido”, cujo gran finale  era o indefectível duelo entre o bem e o mal, com o mal estrebuchando na rua, defronte ao saloon.
O ousado diretor acabou com isso. Nos seus filmes morrem bandidos e mocinhos; muitas vezes nem existe a mocinha, quando ela não passa de uma simples referência. Mas a digital de Peckinpah é mesmo a brutalidade, a violência superlativa, com pedaços de carne voando e sangue esguichando dos ferimentos de bala nos massacres em profusão; quase se pode sentir a fedentina da morte por atacado. Acho que essa técnica é um repto à estupidez das sociedades humanas, corruptas, brutais e perversas, característica inamovível do mundo, passado e atual, nas cidades, nas vilas, nas selvas, nos desertos. Suponho que, na visão de Peckinpah, “Meu ódio será tua herança” seja  uma lembrança disso e uma advertência às sociedades contemporâneas, que ainda não perderam, mesmo neste estágio do mundo, o estigma ancestral da animalidade coeva do Pitecanthropus Erectus  – o elo entre o macaco antropóide e o ser humano. Afinal, a julgar pelos fatos, o mal só será vencido  – eventualmente –  na planície de Armagedon...
            No entanto, a sublimação de valores morais e até a candura são visíveis na dramaticidade do homo ferox , o ser humano feroz - na arte de Peckinpah. Ingenuidade ou hipocrisia ver na obra desse diretor somente a exaltação da violência pura e simples.
            Um grupo de vidas-tortas americanos, depois de malogrado assalto ao cofre de empresa ferroviária, foge e vai dar com os costados numa vila do México, em pleno calor da Revolução Mexicana no começo do Século XX. Os habitantes do povoado são lavradores pobres e espoliados por um general de fancaria, gordo e sujo, comandante militar da região; um bandido vulgar protegido do presidente Victoriano Huerta. Como era previsível, a certa altura o bando deixa a vila e parte para acertar contas com o “Mi General” - prevendo que aquela viagem será a última das suas vidas sórdidas e sem sentido. A propósito, esses aventureiros já não usam os velhos Colt Navy, mas pistolas automáticas - referência, segundo a crítica, à Guerra do Vietnã que então vivia a sua fase mais encarniçada (o filme é de 1969).
            Justamente quando  los gringos  montam e deixam a vila é que ocorre uma das cenas, para mim, mais belas da sétima arte. Os camponeses se juntam em alas para se despedirem e saudá-los, acenando adeuses enquanto cantam a suave  “la golondrina”, cujo compasso é marcado pela marcha dos cavalos. Lentamente eles se vão. A cantiga em voz sentida e o som dos cascos na terra dura criam a atmosfera de forte emoção que envolve aqueles homens ásperos, matadores sem eira nem beira, cuja vida foi marcada pela torpeza. Seus semblantes revelam seres, no final das contas, capazes de se emocionar. Eles se importam com o sofrimento daquele povo que, embora pobre, lhes deu do pouco que tinham e do qual eles se tornaram cativos.
            Sam Peckimpah consegue mostrar, nos vincos do rosto emocionado de cada matador que engole em seco, o sentido de honra. Eles partem sabendo que vão morrer, mas a chama da dignidade, neles tão tardiamente acesa, os torna obstinados. Vão, enfim, fazer o bem; pelo menos vão tentar. No episódio, o pano de fundo desses conflitos e emoções é a singeleza da partida. Só um grande diretor é capaz desse prodígio. Se não assistiram ao filme, façam-no. Quando mais não seja, para ter uma tênue esperança de que em Armagedon o mal poderá ser vencido, conforme Apocalipse 16, 14-16.

            É onde eu te falo...                          

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Caso queira, faça contato direto por email: rubens2instancia@hotmail.com