Assisti hoje, acho que pela quinta ou sexta vez, ao filme
“Meu ódio será tua herança”, dirigido pelo genial Sam Peckinpah, estrelado por
Willian Holden, Ernest Borgnine, Robert Ryan e outros atores famosos, dentre eles
as metralhadoras Gatling (ou seriam Browning?), muito eficientes na arte de
estraçalhar.
Peckinpah modificou o modo de
contar histórias do western. Deixou o
nenhenhém romântico centrado no maniqueísmo cediço - “mocinho/mocinha versus bandido”, cujo gran finale era o indefectível duelo
entre o bem e o mal, com o mal estrebuchando na rua, defronte ao saloon.
O ousado diretor acabou com isso.
Nos seus filmes morrem bandidos e mocinhos; muitas vezes nem existe a mocinha,
quando ela não passa de uma simples referência. Mas a digital de Peckinpah é
mesmo a brutalidade, a violência superlativa, com pedaços de carne voando e sangue esguichando
dos ferimentos de bala nos massacres em profusão; quase se pode sentir a
fedentina da morte por atacado. Acho que essa técnica é um repto à
estupidez das sociedades humanas, corruptas, brutais e perversas, característica
inamovível do mundo, passado e atual, nas cidades, nas vilas, nas selvas, nos
desertos. Suponho que, na visão de Peckinpah, “Meu ódio será tua herança” seja uma lembrança disso e uma advertência às
sociedades contemporâneas, que ainda não perderam, mesmo neste estágio do
mundo, o estigma ancestral da animalidade coeva do Pitecanthropus Erectus – o
elo entre o macaco antropóide e o ser humano. Afinal, a julgar pelos fatos, o
mal só será vencido – eventualmente
– na planície de Armagedon...
No entanto, a sublimação de
valores morais e até a candura são visíveis na dramaticidade do homo ferox , o
ser humano feroz - na arte de Peckinpah. Ingenuidade ou hipocrisia ver na obra
desse diretor somente a exaltação da violência pura e simples.
Um grupo de
vidas-tortas americanos, depois de malogrado assalto ao cofre de empresa
ferroviária, foge e vai dar com os costados numa vila do México, em pleno calor
da Revolução Mexicana no começo do Século XX. Os habitantes do povoado são
lavradores pobres e espoliados por um general de fancaria, gordo e sujo,
comandante militar da região; um bandido vulgar protegido do presidente
Victoriano Huerta. Como era previsível, a certa altura o bando deixa a vila e parte
para acertar contas com o “Mi General” - prevendo que aquela viagem será a
última das suas vidas sórdidas e sem sentido. A propósito, esses aventureiros
já não usam os velhos Colt Navy, mas pistolas automáticas - referência, segundo
a crítica, à Guerra do Vietnã que então vivia a sua fase mais encarniçada (o
filme é de 1969).
Justamente
quando los gringos montam e deixam
a vila é que ocorre uma das cenas, para mim, mais belas da sétima arte. Os camponeses se
juntam em alas para se despedirem e saudá-los, acenando adeuses enquanto cantam
a suave “la golondrina”, cujo compasso é
marcado pela marcha dos cavalos. Lentamente eles se vão. A cantiga em voz
sentida e o som dos cascos na terra dura criam a atmosfera de forte emoção que
envolve aqueles homens ásperos, matadores sem eira nem beira, cuja vida foi
marcada pela torpeza. Seus semblantes revelam seres, no final das contas,
capazes de se emocionar. Eles se importam com o sofrimento daquele povo que,
embora pobre, lhes deu do pouco que tinham e do qual eles se tornaram cativos.
Sam
Peckimpah consegue mostrar, nos vincos do rosto emocionado de cada matador que
engole em seco, o sentido de honra. Eles partem sabendo que vão morrer, mas a
chama da dignidade, neles tão tardiamente acesa, os torna obstinados. Vão,
enfim, fazer o bem; pelo menos vão tentar. No episódio, o pano de fundo desses
conflitos e emoções é a singeleza da partida. Só um grande diretor é capaz desse
prodígio. Se não assistiram ao filme, façam-no. Quando mais não seja, para ter
uma tênue esperança de que em Armagedon o mal poderá ser vencido, conforme Apocalipse
16, 14-16.
É onde eu
te falo...
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