Assisti a um documentário sobre a comunidade selvagem dos
babuínos da savana. Papagaio! Que bicho mais doido, aquele. Que agilidade ele
tem e, em dose maior, que ferocidade! Depois, os dentes, terríveis, poderosos.
Caninos enormes que rasgam a presa e a dela tiram pedaços num piscar de olhos.
Deus me livre desses primatas irritadiços, de cara feia e bunda vermelha. De
todo modo, pitorescos. E, devo dizer, evocativos. Afinal, os processos mentais
são complexos e, nada estáticos, vagueiam pelo nosso arquivo de dados. Foi
assim, suponho, que aqueles antropóides me lembraram um santo.
Um santo? Ora... Um babuíno,
silvestre e rude, pode levar à recordação de um santo? Pois pode. Lembrei-me do
medieval São Boaventura, ou Giavanni da Fidanza, da Ordem dos Frades Menores,
luminar da Escolástica; consta que muito amigo de São Francisco de Assis. Explico
o motivo dessa associação – aparentemente estranha. No entanto, fundada,
segundo história que li, faz tempo. Ei-la:
É ali pela metade do Século XI.
Veneza está em ebulição com os preparativos da grande festa à qual
acorrem potentados e mercadores endinheirados. O Dodge Domenico Salvo se
casa com a lindíssima princesa Teodora , filha de Constantino Ducas, o magnífico
imperador de Bizâncio – reino encantado da hoje Turquia. A cosmopolita Veneza é rica e portentosa metrópole que floresceu graças ao comércio
internacional. No entanto, mesmo ela , a Pérola do Adriático fica pasmada ante a
magnificência da comitiva bizantina.
( Os turcos, antigamente como hoje, eram altamente civilizados e, como tal, davam enorme
importância às finesses . Eram
irredutíveis no capítulo da higiene. Aliás, não se deve esquecer que o famoso
“banho turco”, com vapores e perfumes, é... obviamente... invenção turca. Portanto, se cuidar da higidez
corporal era um hábito fundamental entre os bizantinos, não menor atenção eles
davam à higiene na cozinha e à mesa. )
Quando entra na sala de
banquetes do palazzo ducale , a linda
Teodora causa ondas de frisson. Que beleza! Que pele! Que charme! Que perfume ela deixa
no seu rastro!
O banquete vai começar. Vinhos servidos, travessas e
terrinas chegam à mesa. Brindes, vivas, palmas, se sucedem e ... acontece o desastre! Com um sinal onde
rebrilham anéis e pulseiras na mãozinha mimosa, a noiva, princesa turca de fino traquejo
social, chama a sua dama e lhe pede... o garfo de ouro!
Ah!!! Deus Santíssimo, o tridente
de Satanás! Oh! Blasfêmia! Anátema! Pecado! Vade
retro , mulher gentia! Ímpia! Ela usa o tridente maligno para comer! Miserere mei, Deus ! Longe de mim,
pecadora! São Boaventura, o frade, esgoela maldições. Núncios e prelados fazem coro e alardeiam pragas. Uns de joelhos, outros de
braços alçados clamam aos céus. Ritos
para exorcizar Satanás. Canadas de água benta são atiradas a esmo. O
garfo de Teodora é um agravo irremissível ao Senhor!
Chovem insultos. Os convidados
debandam, cheios de horror. Correria. Tropeções. Porcelanas se quebram.
Ânforas de vinho se reviram sobre a mesa. Cristais viram frangalhos. Arrancam-se cortinas no espavento da retirada.
Frutas e assados se espalham sobre os tapetes. Pandemônio. Os sinos de São
Marcos tocam a rebate. E dobram finados depois. Nesse clima e ira e aflição a voz trovejante de São Boaventura, o
frade, pede a excomunhão da apóstata que celebra o Maligno ao comer. Partem mensageiros. Roma entra em convulsão.
Mas antes que as autoridades
eclesiásticas ditem os seus desairosos decretos contra o uso do garfo, a
princesa morre, de repente. O frade agradece a intervenção divina, que baniu
deste mundo a estrangeira infame. Então , no paroxismo da sua bem-aventurança,
declara solenemente que a morte súbita de Teodora é “ castigo de Deus ”...
Suponho que a jurisprudência canônica da época preconizava que, sob pena de insurgência às leis divinas, para comer só se podiam usar mãos e dentes; garfo era coisa do Tinhoso. E fico a imaginar o frade escolástico brandindo uma perna de cordeiro e dela arrancando maçudos pedaços - com os dentes.
É onde eu te falo.
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