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quarta-feira, 15 de junho de 2011

SOPA, SOPEIRAS, CASTELOS. PÃO, VINHO E AMOR

            Paixão por vinho, por comida e por Eça de Queirós – eis um trinômio recorrente nos meus textos, porque minha mente é deles hospedeira que não cobra diária. Para rematar, minha esposa Andréa Pio (outra paixão que meus pensamentos hospedam de graça) também é apaixonada dessa tríade maravilhosa, de sorte que sempre estamos enredados, nós cinco. Recentemente lembramos: onde está o Eça, está o vinho e está a comida, donde ser natural que esses três se acompanhem “lindamente”, para usar uma expressão ao gosto do iluminado escritor.   
Em “A Ilustre Casa de Ramires” pode-se sentir o gosto e os aromas das comidinhas e dos vinhos que frequentam as mesas de Gonçalo Ramires, de José Barrolo e da tasca do Gago. Ali reinam gloriosamente o Alvarinho e o Alvarelhão, as “pratadas de ovos com chouriço”, o “frango com ervilhas”, a “salada de pepinos”, a “solha com ervas”, a “tainha assada”, o “cabrito assado em espeto de cerejeira”; sem contar os indefectíveis “ladrilhos de marmelada”, os “bolos de bacalhau” e os “pastéis de nata” da confeitaria das Matildes”, para o que sempre há um vinho adequado. Quando ele fala nos vinhos de Amarante, podemos senti-los na boca, opá! Ai, Jesus, que vontade de sorver os vinhos ecianos, brancos e tintos, verdes, verdinhos, cheios de agulha, que hoje não se acham mais...  Em certa manhã, ao “almocinho”, o Fidalgo da Torre alude às “sopas da família”, com muitos legumes, lascas de presunto e ramos de hortelã ao fundo da malga. Santo Deus, que fome dá ler aquilo!
            Pois é. As sopas... Que alimento maravilhoso! Nutritivas, fumegantes, coloridas, de fácil digestão e aparência festiva, as sopas, sobre contentar o estômago, têm o dom de confortar o espírito. E, a bem dizer, somos, primordialmente, estômago e espírito. O espírito é um “trem” delicado, que tem a mania de se abater nos desaires da vida, notadamente por uma debilidade orgânica ou pela falta de cafunés e aconchegos. Ofereçam uma bela, sopa, cheirosa e atraente, ao indivíduo gripado, ao decepcionado no amor, ao do estômago avariado, ao deprimido. Não dá outra! O sujeito melhora logo. Às vezes sara! A experiência mostra e a sabedoria ancestral o confirma. Basta experimentar.
            Nada obstante, a sopa guarda o estigma de um preconceito absurdo: é tida como “comida de pobre”, ou “comida de doente”, e, portanto, no juízo dos desavisados, não merece consideração e aplauso. Essa opinião me dilacera, quando a ouço. Claro, não estou falando de quem tem horror fisiológico à sopa, lá por suas idiossincrasias. Aí o caso é outro, como o das pessoas, por exemplo, que não suportam jiló, dobradinha, fígado, frutos do mar. Existem-nas. Existe mesmo quem deteste vinho... 
Acho proveitoso um conselho aos birrentos preconceituosos. Primeiro, visitem os museus, onde vão encontrar magníficos serviços de mesa de reis, imperadores e potentados de todas as épocas; ali estarão riquíssimas sopeiras em porcelana rara, decoradas com flores e ramos dourados que circundam as armas da sua dinastia. São peças de nobre estirpe, saídas das louçarias de Sevres, de Limoges e similares, algumas bem mais antigas. Não são sopeiras, mas obras de arte. Nem é preciso ir à Europa; basta visitar o Museu de Petrópolis ou o Museu da Quinta da Boa Vista, e admirar as sopeiras que serviram aos Braganças que reinaram no Brasil. Ali se podem ver as maravilhosas sopeiras que serviram às Suas Majestades. Aliás, D. Pedro de Alcântara não fechava o dia sem uma boa canja, dizem os historiadores. Ah, e com raminhos de salsa...
Depois, os birrentos devem (sem deixar de ler os textos) folhear publicações especializadas, que tratam justamente das mesas de alto nível. Nelas vi uma sopeira cuja tampa ostenta, à guisa de pegador, a escultura de uma ninfa, cinzelada em ouro por ninguém menos que o ourives da Renascença, Benevenuto Cellini, o Inigualável; salvo engano meu, ao serviço de Cosimo I de Medicci, Duque de Florença e Grão Duque da Toscana. Vi outra, absolutamente preciosa, do serviço de Carlos I da Espanha (Carlos V do Sacro Império Romano), que acumulou reinos e ducados como ninguém. Ouvi contar que Disraeli, Duque de Beaconsfield, ministro e gênio financeiro da Rainha Vitória, se perdia por uma sopa de ervilhas. Como são inconsistentes as colocações dos que desprezam as sopas! Ao contrário do eles pensam, nelas não há pobreza, mas riqueza, nobreza e poder, já que reis, imperadores, ministros, papas, dodges e dignitários apreciavam-nas, e muito.   
Pois é. Como Belo Horizonte anda muito frio, enriqueci alma, coração e espírito com... sopa e vinho! E pão, claro. Com os vagares e o élan devidos, preparei o caldo: garrão bovino, pimenta branca, cebola, aipo, alho poró e sálvia; água, fogo brando e tempo; então, era coá-lo e nele cozer “al dente” as massinhas e os legumes, cada qual no seu tempo próprio. O pão ali; cheiroso, dourado, estralando o craquelê da casca. Só faltava Sua Majestade. Não da Casa de Bragança, de Habsburgo ou Medicci, claro; mas havia outro conviva, igualmente real: Sua Alteza,  o Vinho!
A sopeira reinava sobre a mesa; simples, branca, mas nobre e cheia de glamour. Servi um Crasto Superior: nele, duas tourigas, a Nacional e a Franca, mais Tinta Roriz, Souzão e Vinha Velha. Time de respeito, sô! Encanta na cor, seduz no gosto; só harmonia e equilíbrio. Então, evangelicamente, parti o pão. Depois, na malga, fiz uma cama de galhos frescos de orégano e hortelã, acomodei a sopa e.... me senti o rei de Portugal. Eu era o próprio Dom Manoel! No que não estava enganado: Andréa segurou minha mão e proclamou: “Você é o rei da minha vida!”. Uau! Sou isso tudo?
Bem, a sobremesa foi um grande beijo de amor...

Um comentário:

  1. Rubens, parabéns pelo Blog e pelos ótimos textos. É sempre bom encontrar pessoas que escrevem com essa paixão. Os prazeres da vida estão aí, realmente, para serem vividos.
    Serei um leitor assíduo.
    Abraços.

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