Paixão
por vinho, por comida e por Eça de Queirós – eis um trinômio recorrente
nos meus textos, porque minha mente é deles hospedeira que não cobra
diária. Para rematar, minha esposa Andréa Pio (outra paixão que meus
pensamentos hospedam de graça) também é apaixonada dessa tríade
maravilhosa, de sorte que sempre estamos enredados, nós cinco.
Recentemente lembramos: onde está o Eça, está o vinho e está a comida,
donde ser natural que esses três se acompanhem “lindamente”, para usar
uma expressão ao gosto do iluminado escritor.
Em
“A Ilustre Casa de Ramires” pode-se sentir o gosto e os aromas das
comidinhas e dos vinhos que frequentam as mesas de Gonçalo Ramires, de
José Barrolo e da tasca do Gago. Ali reinam gloriosamente o Alvarinho e o
Alvarelhão, as “pratadas de ovos com chouriço”, o “frango com
ervilhas”, a “salada de pepinos”, a “solha com ervas”, a “tainha
assada”, o “cabrito assado em espeto de cerejeira”; sem contar os
indefectíveis “ladrilhos de marmelada”, os “bolos de bacalhau” e os
“pastéis de nata” da confeitaria das Matildes”, para o que sempre há um
vinho adequado. Quando ele fala nos vinhos de Amarante, podemos
senti-los na boca, opá! Ai, Jesus, que vontade de sorver os vinhos
ecianos, brancos e tintos, verdes, verdinhos, cheios de agulha, que hoje
não se acham mais... Em certa manhã, ao
“almocinho”, o Fidalgo da Torre alude às “sopas da família”, com muitos
legumes, lascas de presunto e ramos de hortelã ao fundo da malga. Santo
Deus, que fome dá ler aquilo!
Pois
é. As sopas... Que alimento maravilhoso! Nutritivas, fumegantes,
coloridas, de fácil digestão e aparência festiva, as sopas, sobre
contentar o estômago, têm o dom de confortar o espírito. E, a bem dizer,
somos, primordialmente, estômago e espírito. O espírito é um “trem”
delicado, que tem a mania de se abater nos desaires da vida, notadamente
por uma debilidade orgânica ou pela falta de cafunés e aconchegos.
Ofereçam uma bela, sopa, cheirosa e atraente, ao indivíduo gripado, ao
decepcionado no amor, ao do estômago avariado, ao deprimido. Não dá
outra! O sujeito melhora logo. Às vezes sara! A experiência mostra e a
sabedoria ancestral o confirma. Basta experimentar.
Nada
obstante, a sopa guarda o estigma de um preconceito absurdo: é tida
como “comida de pobre”, ou “comida de doente”, e, portanto, no juízo dos
desavisados, não merece consideração e aplauso. Essa opinião me
dilacera, quando a ouço. Claro, não estou falando de quem tem horror
fisiológico à sopa, lá por suas idiossincrasias. Aí o caso é outro, como
o das pessoas, por exemplo, que não suportam jiló, dobradinha, fígado,
frutos do mar. Existem-nas. Existe mesmo quem deteste vinho...
Acho
proveitoso um conselho aos birrentos preconceituosos. Primeiro, visitem
os museus, onde vão encontrar magníficos serviços de mesa de reis,
imperadores e potentados de todas as épocas; ali estarão riquíssimas
sopeiras em porcelana rara, decoradas com flores e ramos dourados que
circundam as armas da sua dinastia. São peças de nobre estirpe, saídas
das louçarias de Sevres, de Limoges e similares, algumas bem mais
antigas. Não são sopeiras, mas obras de arte. Nem é preciso ir à Europa;
basta visitar o Museu de Petrópolis ou o Museu da Quinta da Boa Vista, e
admirar as sopeiras que serviram aos Braganças que reinaram no Brasil.
Ali se podem ver as maravilhosas sopeiras que serviram às Suas
Majestades. Aliás, D. Pedro de Alcântara não fechava o dia sem uma boa
canja, dizem os historiadores. Ah, e com raminhos de salsa...
Depois,
os birrentos devem (sem deixar de ler os textos) folhear publicações
especializadas, que tratam justamente das mesas de alto nível. Nelas vi
uma sopeira cuja tampa ostenta, à guisa de pegador, a escultura de uma
ninfa, cinzelada em ouro por ninguém menos que o ourives da Renascença,
Benevenuto Cellini, o Inigualável; salvo engano meu, ao serviço de
Cosimo I de Medicci, Duque de Florença e Grão Duque da Toscana. Vi
outra, absolutamente preciosa, do serviço de Carlos I da Espanha (Carlos
V do Sacro Império Romano), que acumulou reinos e ducados como ninguém.
Ouvi contar que Disraeli, Duque de Beaconsfield, ministro e gênio
financeiro da Rainha Vitória, se perdia por uma sopa de ervilhas. Como
são inconsistentes as colocações dos que desprezam as sopas! Ao
contrário do eles pensam, nelas não há pobreza, mas riqueza, nobreza e
poder, já que reis, imperadores, ministros, papas, dodges e dignitários
apreciavam-nas, e muito.
Pois
é. Como Belo Horizonte anda muito frio, enriqueci alma, coração e
espírito com... sopa e vinho! E pão, claro. Com os vagares e o élan
devidos, preparei o caldo: garrão bovino, pimenta branca, cebola, aipo,
alho poró e sálvia; água, fogo brando e tempo; então, era coá-lo e nele
cozer “al dente” as massinhas e os legumes, cada qual no seu tempo
próprio. O pão ali; cheiroso, dourado, estralando o craquelê da casca.
Só faltava Sua Majestade. Não da Casa de Bragança, de Habsburgo ou
Medicci, claro; mas havia outro conviva, igualmente real: Sua Alteza, o Vinho!
A
sopeira reinava sobre a mesa; simples, branca, mas nobre e cheia de
glamour. Servi um Crasto Superior: nele, duas tourigas, a Nacional e a
Franca, mais Tinta Roriz, Souzão e Vinha Velha. Time de respeito, sô!
Encanta na cor, seduz no gosto; só harmonia e equilíbrio. Então,
evangelicamente, parti o pão. Depois, na malga, fiz uma cama de galhos
frescos de orégano e hortelã, acomodei a sopa e.... me senti o rei de
Portugal. Eu era o próprio Dom Manoel! No que não estava enganado:
Andréa segurou minha mão e proclamou: “Você é o rei da minha vida!”.
Uau! Sou isso tudo?
Bem, a sobremesa foi um grande beijo de amor...
Rubens, parabéns pelo Blog e pelos ótimos textos. É sempre bom encontrar pessoas que escrevem com essa paixão. Os prazeres da vida estão aí, realmente, para serem vividos.
ResponderExcluirSerei um leitor assíduo.
Abraços.