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sexta-feira, 27 de julho de 2012

POR QUE NÃO UMA SOBREMESA VOTIVA?


        Chega-me de Portugal a receita de um doce que reina, sem jaça e contestação, nas mesas d’além mar. Não há festa em que ela, quando chamada, fique revel. Ao fim das ceatas copiosas, ela se apresenta sempre, gloriosamente acomodada em folhudo novelo de fios de ovos. Vem, muito pimpona, na rica travessa de porcelana que certamente serviu a muitas gerações dos antanhos, e espraia o seu corpo amarelo ondulante em  forma de “s” - para que cabeça e cauda não ultrapassem o comprimento da louça.  
            Mas... Que raio de sobremesa tem cabeça e rabo? Pois essa tem. E tem porque o doce é cuidadosamente esculpido no formato da lampreia, peixe da família dos Agnatha, dizem que o mais primitivo dos vertebrados existentes. Como peixe é de uma feiúra atroz, mas como arte confeiteira é digno de um banquete na Mansão dos Bem-aventurados. Quando surge na bandeja, os comensais deliram; ali está uma lampreia doce, cujos detalhes são desenhados com cerejas e creminhos coloridos, olhos, boca, guelras, até escamas e língua. Estamos falando da celestial ... txam-txam-txam-txam... lampreia de ovos! Sim, a lampreia de que só dão conta confeiteiros portugueses de alta linhagem.
            É raro o livro de Eça (sempre ele, genial gourmand!) onde uma delas não apareça na hora do Porto, depois da comezaina de bacalhaus e da frangalhada com ervilhas que sucedem à pratada de
ovos com chouriço. Aliás, vai um conselho: nunca leia Eça com o estômago vazio...
            Pois é. Mas a lampreia de ovos (os mestres da prosódia mandam pronunciar lamprêia (com “e” fechado) é um doce que, no bom jargão lusitano, se pode dizer... bestial ! A começar pela quantidade de ovos que se quebram, de sorte a recolher cinco dúzia de gemas – isso mesmo: 60 gemas!!! Imagino os esgares e horrores que se pintam nas caras de dietistas entojados e seus entojadíssimos discípulos diante de um doce que leva coisa de meia grosa de gemas de ovos!
            É mais uma das delícias “conventuais” da terra de Afonso Henrique, cujos galinheiros, conforme o Guinness Book, comportavam mais galinhas que torcedores no Maracanã em fim de campeonato. Era a época em que monjas e noviças sem ocupação mais rude, se juntavam nas vastas cozinhas dos conventos a inventar gulodices açucaradas, com as quais regalavam padres, prelados e confessores, notoriamente esganados e barrigudos.
Esses religiosos conviviam bem com os pecados veniais, notadamente o da gula. No que estavam certos, acho. Aliás, estavam bem amparados na preleção de Agostinho, grande sabedor das coisas terrenas: “Todas as vezes que alguém toma, no comer e no beber, mais do que necessário, saiba que isso ficará entre os pequenos pecados”. Ora, pois, ninguém vai perder sua alma por conta de pequenos pecados. Então, “m’ninos, aos doces!” Pois é. Se querem, posso-lhes fornecer a receita dessa iguaria admirável.
Andei pensando. Ao tempo do Êxodo, os hebreus desconheciam-na, segundo o Velho Testamento. Mas formulo a seguinte tese: se o povo de Moisés comesse lampreia de ovos, é absolutamente certo que nas suas oblações grelhadas em honra a Yahweh, entregariam às brasas do propiciatório sagrado, além das carnes regimentais, uma bela lampreia votiva, à sobremesa divina. Feita, à maneira kosher, esse doce “desprenderia odores suavíssimos ao Senhor”, acho.

É onde eu te falo...


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