Chega-me de
Portugal a receita de um doce que reina, sem jaça e contestação, nas mesas
d’além mar. Não há festa em que ela, quando chamada, fique revel. Ao fim das
ceatas copiosas, ela se apresenta sempre, gloriosamente acomodada em folhudo
novelo de fios de ovos. Vem, muito pimpona, na rica travessa de porcelana que
certamente serviu a muitas gerações dos antanhos, e espraia o seu corpo amarelo
ondulante em forma de “s” - para que
cabeça e cauda não ultrapassem o comprimento da louça.
Mas... Que
raio de sobremesa tem cabeça e rabo? Pois essa tem. E tem porque o doce é
cuidadosamente esculpido no formato da lampreia, peixe da família dos Agnatha,
dizem que o mais primitivo dos vertebrados existentes. Como peixe é de uma
feiúra atroz, mas como arte confeiteira é digno de um banquete na Mansão dos
Bem-aventurados. Quando surge na bandeja, os comensais deliram; ali está uma
lampreia doce, cujos detalhes são desenhados com cerejas e creminhos coloridos,
olhos, boca, guelras, até escamas e língua. Estamos falando da celestial ...
txam-txam-txam-txam... lampreia de ovos!
Sim, a lampreia de que só dão conta confeiteiros portugueses de alta linhagem.
É raro o
livro de Eça (sempre ele, genial gourmand!) onde uma delas não apareça na hora
do Porto, depois da comezaina de bacalhaus e da frangalhada com ervilhas que
sucedem à pratada de
ovos com chouriço. Aliás, vai um conselho: nunca leia Eça
com o estômago vazio...
Pois é. Mas
a lampreia de ovos (os mestres da
prosódia mandam pronunciar lamprêia (com “e” fechado) é um doce que, no bom jargão lusitano, se pode dizer... bestial ! A começar pela quantidade de ovos
que se quebram, de sorte a recolher cinco dúzia de gemas – isso mesmo: 60
gemas!!! Imagino os esgares e horrores que se pintam nas caras de dietistas
entojados e seus entojadíssimos discípulos diante de um doce que leva coisa de meia
grosa de gemas de ovos!
É mais uma
das delícias “conventuais” da terra de Afonso Henrique, cujos galinheiros, conforme
o Guinness Book, comportavam mais galinhas que torcedores no Maracanã em fim de
campeonato. Era a época em que monjas e noviças sem ocupação mais rude, se
juntavam nas vastas cozinhas dos conventos a inventar gulodices açucaradas, com
as quais regalavam padres, prelados e confessores, notoriamente esganados e
barrigudos.
Esses religiosos conviviam bem
com os pecados veniais, notadamente o da gula. No que estavam certos, acho.
Aliás, estavam bem amparados na preleção de Agostinho, grande sabedor das
coisas terrenas: “Todas as vezes que
alguém toma, no comer e no beber, mais do que necessário, saiba que isso ficará
entre os pequenos pecados”. Ora, pois, ninguém vai perder sua alma por
conta de pequenos pecados. Então, “m’ninos, aos doces!” Pois é. Se querem,
posso-lhes fornecer a receita dessa iguaria admirável.
Andei pensando. Ao tempo do
Êxodo, os hebreus desconheciam-na, segundo o Velho Testamento. Mas formulo a
seguinte tese: se o povo de Moisés comesse lampreia de ovos, é absolutamente
certo que nas suas oblações grelhadas em honra a Yahweh, entregariam às brasas
do propiciatório sagrado, além das carnes regimentais, uma bela lampreia
votiva, à sobremesa divina. Feita, à maneira kosher, esse doce “desprenderia odores suavíssimos ao Senhor”,
acho.
É onde eu te falo...
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