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terça-feira, 25 de março de 2014



 

                                  









                                                          
                                         SEGREDOS   EM   TEMPO   DE   ADVENTO

            Deusilene Aparecida de Jesus, vulgo Deusa, filha de Deusdete e Marlene – ambos igualmente de Jesus    nasceu  absoluta,  justa razão para que Taruiras neles se louvasse como em certidão de fé pública. Naquele lugar de vaga localização e aguadas ocorrências, um simples vislumbre, até um palpite de Deusirene virava premonição; e com a irreversibilidade  de decisão irrecorrível. Deusilene previu,  sentiu, teve um lampejo... batata !    ninguém duvidava de que a coisa aconteceria. E acontecia, de fato.
            Então, se os presságios de Deusilene eram de bom agouro, comemoravam-nos com antecedência; se eram maus, curtiam-se os prantos e a agonia, também por antecipação. Sim, pois o que os Fados deram a Deusirene em prodígios da percepção pré-cognitiva, retiraram-lhe de siso e juízo crítico. Para ela não havia meias medidas: trágicas ou festivas, as previsões que lhe vinham  ela as divulgava imediata e igualmente, sem dar  importância aos respectivos conseguintes. Em vão os pais e o povo em geral lhe pediam que se calasse relativamente aos porvires amargurosos e se limitasse a apregoar somente os de alegria. Qual! A Deusilene faltava o sentido da discrição e da piedade.
Vira e mexe, onde estivesse, ela se alheava  em transe catatônico, vidrava os olhos e eriçava os cabelos. Era o sinal. As almas de Taruira gelavam de pavor. Sonhar coisas boas se chama esperança, sentimento forte mo ser humano; no entanto, muito mais forte, e mais cáustico, é o sentimento oposto    o   medo,  para o qual foi o homem idealizado e é uma das maldições que o acompanham desde a Criação. Quando se via que Deusilene estava tendo um presságio, as respirações ficavam suspensas. A esperança não sumia, propriamente, mas tanto se acanhava ante a ferocidade do medo, que desfalecia.  O que virá? Quem vai ser a vítima da vez? Eram as indagações silenciosas que mal se escondiam entre os risos amarelos dos que, com as entranhas  cheias de pavor, murmuravam nada convincentes “é preciso ter pensamento positivo”.           
  
            Pois era um sábado à tardinha, quando surgiu em Taruira o padre Torquato Silvestre, pregador de fama.  Aguardava-o, todo ufano em terno de brim claro,  o maioral da cidade, Coronel  Firmino Ferreira, que lhe abriu a porta do carro. Torquato, seboso e altaneiro, apeou, correu os olhos entojados pela pracinha da vila e entrou na casa do Coronel , que se desmanchava em  salamaleques sobre o visitante e destilava orgulho sobre os tabaréus locais. Dona Bebiana Ferreira os aguardava na soleira do alpendre  e acorreu num cumprimento de cerimônia, com o regimental  “louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, que o padre respondeu num aguado “para sempre seja louvado”. Coronel  era, por assim dizer, o dono do lugar, por ser dono do armazém, da botica, do matadouro, das tropas  e criador forte de gado gir. Fazia anos no dia seguinte, Domingo do Advento, de modo que Torquato lhe vinha celebrar a missa das dez, a título de ação de graças. 
            Nem dera as nove e a igrejinha, recém lavada, espanada e florida, já se abarrotava de gente, fora os que, amontoados no adro, enfarpelados e glostorados, comentavam o grande evento. Afinal, acontecimento daquele porte era novidade em Taruira. O coro das beatas ensaiava mais uma vez o  Ave Verum Corpus  para o fundo musical da Consagração, quando o sino anunciou a entrada do pregador. Torquato  vinha resplandecente numa casula prata e verde, orlada de passamanaria roxa, cheia de alamares, fitilhos de todas as cores e pedrarias em profusão   um  arco-íris desvairado.
            - Introibo ad altare Dei...
            Dona Bebiana Ferreira, com suas gordurinhas contidas em vistoso modelo de tafetá  vermelho, estufafa de júbilos piedosos, exibindo suas exuberâncias corporais, o rosto bonito caiado de pó-de-arroz  Cashmere Bouquet.  

             Foi antes do sermão. Já Torquato, muito repicado, se dirigia ao púlpito, quando estacou. Deusilene, no meio da nave, estava em transe! Esgadelhada, trêmula, com os olhos perdidos e mãos em garra, soltou um berro estridente que gelou a igreja. Depois da gargalhada insana, soltou, aos gritos:
            - A muié do Coroné Gardino vaifazê víço co’ home de preto !  - e, toc-toc-toc, batia com a  mão direita espalmada sobre a esquerda, fechada. Depois, no espavento do transe, deixou a igreja em disparada, sempre gritando: - É viço... É viço qu’ela vai fazê... co’home de preto.
Vininho,  o prático de farmácia encarregado da botica, que sempre usava o mesmo terno preto, se encolheu junto a escada do coro, sem saber onde punha as mãos, atarantado e tomado de horror ante o olhar assassino que lhe endereçava o Coronel    segundo a vidente    candidato a corno. Na mesma hora deixou Taruira para não mais voltar.
Torquato, cosmopolita, não sabia o que era “fazê viço”, mas pelo toc-toc nada ambíguo da Deusilene, entendeu logo. Sem ação, arregalou os olhos e correu rumo ao altar. Dona Bebiana desmaiou. Coronel ficou roxo espumando pelos cantos da boca: - Mardita ! Vaca doida! Quem faz viço é tu, fié-da-puta!  Eu te mostro... O coro, numa bem sucedida tentativa de por fim ao rebuliço, respondeu aos acordes iniciais do harmônio e despejou bem alto o Magnifiact anima mea a Domine,  com o que a missa acabou sob um  Ite, missa est  resmungado por Torquato.

            Com o sumiço do Vininho, a vila abrandou. Torquato convenceu o Coronel a não mandar atrás do prático dois capangas decididos, um deles eficiente capador. Seguiu-se o jantar, onde as artes culinárias de Dona Bebiana, e o vinho,  amansaram os espíritos. Torquato comeu com gosto meia leitoa assada, uma quarta de farofa  e duas porções respeitáveis de macarronada. A paz reinava na bonomia da ceia amorável. Dona Bebiana não cessava de encher o copo do padre. Tomada de claros e ruborizantes enlevos,  não escondia a satisfação de estar oferecendo a hóspede tão ilustre uma ceata primorosa  – o que muito lhe aumentaria o prestigio em Taruira.
Mas na rua e nas casas, na venda, no bilhar, o assunto era o mesmo: Dona Bebiana “fazendo vício” com o Vininho... E surgiram as dúvidas:
            - Uai, sô, c’o Vininho sumido num vai tê a fuzarca co’a muié do Coroné...
            - E num é qu’ocê tá certo, home?
            - Trem mais doido... Dona Bibiana sortano a racha pro Vininho...
- Logo pro Vininho, aquele mocorongo?
- Cá, cá, cá, cá!  Mocorongo... Boa essa!
            - É... Mais eu to pensano é notra côsa...
- Âhn? Qui côsa?
- Tô pensano aqui é se a Deusa errô dessa veiz?
            - Bão, se o Vininho vortá, fica sem os bago... Cumé qu’ele vai acochá a muié do Coroné?
            Véio  Osório, mateiro de longas jornas e reconhecidos saberes, esperou que se arrefecessem as gargalhadas e considerou a “qüestã”  encerrada:
- É... Faiz sintido... faiz sintido...   
- Intão, a Deusa faiô!
            - É, faiô mêso, viu?
            - Parece... Mais será qu’a Dona Bibiana tava meso de treta c’o Vininho?
            - Num sei, sô... Mais, s’eu bem se alembro, Deusilene num falô qu’ela  feiz  viço c’o Vininho, não. Falô ansim qu’ela inha fazê !   
            - Qué dizê que num deu tempo?
            - Não... sim... qué dizê, fazê mêso, ela num...
- Qué dizê qu’ela inda pode fazê...
            Face a raciocínio tão lógico, Véio Osório, meio de banda   nunca ficava ostensivamente na roda   ponderou:
            - Tomém faiz sintido...

            Torquato, cansado e empanturrado de leitoa e macarronada, fora um pudim de claras com muita ameixa,  aceitou o convite do seu anfitrião para permanecer na Taruira mais uns dois dias. – Só pur mode discansá mucado, qu’a festa, pensano bem, inda mais co’aquelas  ingrizia da Deusirene,  deu pra mexê co’os nervo da gente...  
            - Está certo, Coronel. Aceito o seu convite e agradeço. Viajo na terça, de manhã.
            De manhã, bem cedo, Coronel avisou ao Torquato, então refestelado à mesa de café com bolos e quitandas, que precisava ir à fazenda para separar um lote de reses que vendera:
            - Num demoro, Pad’Torquato. É só qüestã de separá uma ponta-de-vaca e tô vortano pro armoço.
            Nesse instante Torquato engasgou com farelos de brevidade que comia e derramou café na batina. Com um oh! assustado, Dona Bebiana correu à cozinha, de onde voltou com um pano de prato e uma tigelinha de água quente: - Acontece, Pad’Torquato... Deixa qu’eu limpo isso num minuto. Com licença....  

            Deusilene sumira, depois do fuzuê. Não a haviam visto em Taruira. Quando o Coronel montou e seguiu com os capatazes, ela olhou demoradamente a casa. Sem ruído, se esgueirou da pilha de lenha sob o telheiro anexo e  foi se postar sob a janela do quarto onde Dona Bebiana arfava e dava abafados gritinhos de prazer. Deusilene espichou o olho pela fresta da janela, mas não viu coisa alguma; a não ser um pano preto atirado à cabeceira da cama de casal...
            No dia seguinte, terça feira, quando o sol mal saíra, foram as despedidas. Coronel declinou repetidos agradecimentos a Torquato, desculpando-se por “qualquer coisa”. Torquato gentilíssimo, Fez questão de dizer que ele, sim, é quem agradecia; por  tudo. Ao se despedir de Dona Bebiana, deu-lhe um demorado olhar de ternura e, todo pimpão,  lhe pôs na mão um tercinho de madrepérola:  - Para as suas orações, Dona Bebiana... Ela, com o rosto em brasa, só conseguiu suspirar, visivelmente emocionada, com a respiração ofegante.
            Na pracinha, àquela hora deserta, só Véio Osório acompanhou a cena, sem perder um só movimento das pessoas reunidas no alpendre. Franziu ligeiramente o cenho e deu um risinho de lado, quando o padre, antes de entrar no carro, alisou demoradamente a sua batina... preta.
            Seguindo com o olhar o carro que se afastava, Véio Osório balançou a cabeça num gesto afirmativo e murmurou:
            - Humm... Faiz sintido... .

                                              
                                                                    F I M
             


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