SEGREDOS EM TEMPO DE ADVENTO
Deusilene
Aparecida de Jesus, vulgo Deusa, filha de Deusdete e Marlene – ambos igualmente
de Jesus – nasceu
absoluta, justa razão para que
Taruiras neles se louvasse como em certidão de fé pública. Naquele lugar de
vaga localização e aguadas ocorrências, um simples vislumbre, até um palpite de
Deusirene virava premonição; e com a irreversibilidade de decisão irrecorrível. Deusilene
previu, sentiu, teve um lampejo...
batata ! – ninguém duvidava de que a coisa aconteceria.
E acontecia, de fato.
Então,
se os presságios de Deusilene eram de bom agouro, comemoravam-nos com
antecedência; se eram maus, curtiam-se os prantos e a agonia, também por
antecipação. Sim, pois o que os Fados deram a Deusirene em prodígios da
percepção pré-cognitiva, retiraram-lhe de siso e juízo crítico. Para ela não
havia meias medidas: trágicas ou festivas, as previsões que lhe vinham ela as divulgava imediata e igualmente, sem
dar importância aos respectivos
conseguintes. Em vão os pais e o povo em geral lhe pediam que se calasse
relativamente aos porvires amargurosos e se limitasse a apregoar somente os de
alegria. Qual! A Deusilene faltava o sentido da discrição e da piedade.
Vira e mexe,
onde estivesse, ela se alheava em transe
catatônico, vidrava os olhos e eriçava os cabelos. Era o sinal. As almas de
Taruira gelavam de pavor. Sonhar coisas boas se chama esperança, sentimento
forte mo ser humano; no entanto, muito mais forte, e mais cáustico, é o
sentimento oposto – o
medo, para o qual foi o homem
idealizado e é uma das maldições que o acompanham desde a Criação. Quando se
via que Deusilene estava tendo um presságio, as respirações ficavam suspensas. A
esperança não sumia, propriamente, mas tanto se acanhava ante a ferocidade do
medo, que desfalecia. O que virá? Quem
vai ser a vítima da vez? Eram as indagações silenciosas que mal se escondiam
entre os risos amarelos dos que, com as entranhas cheias de pavor, murmuravam nada convincentes
“é preciso ter pensamento positivo”.
Pois
era um sábado à tardinha, quando surgiu em Taruira o padre Torquato Silvestre,
pregador de fama. Aguardava-o, todo
ufano em terno de brim claro, o maioral
da cidade, Coronel Firmino Ferreira, que
lhe abriu a porta do carro. Torquato, seboso e altaneiro, apeou, correu os
olhos entojados pela pracinha da vila e entrou na casa do Coronel , que se
desmanchava em salamaleques sobre o
visitante e destilava orgulho sobre os tabaréus locais. Dona Bebiana Ferreira
os aguardava na soleira do alpendre e
acorreu num cumprimento de cerimônia, com o regimental “louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, que
o padre respondeu num aguado “para sempre seja louvado”. Coronel era, por assim dizer, o dono do lugar, por ser
dono do armazém, da botica, do matadouro, das tropas e criador forte de gado gir. Fazia anos no dia
seguinte, Domingo do Advento, de modo que Torquato lhe vinha celebrar a missa
das dez, a título de ação de graças.
Nem
dera as nove e a igrejinha, recém lavada, espanada e florida, já se abarrotava
de gente, fora os que, amontoados no adro, enfarpelados e glostorados,
comentavam o grande evento. Afinal, acontecimento daquele porte era novidade em
Taruira. O coro das beatas ensaiava mais uma vez o Ave Verum Corpus para o fundo
musical da Consagração, quando o sino anunciou a entrada do pregador.
Torquato vinha resplandecente numa
casula prata e verde, orlada de passamanaria roxa, cheia de alamares, fitilhos de
todas as cores e pedrarias em profusão –
um arco-íris desvairado.
-
Introibo ad altare Dei...
Dona Bebiana Ferreira, com suas
gordurinhas contidas em vistoso modelo de tafetá vermelho, estufafa de júbilos piedosos, exibindo
suas exuberâncias corporais, o rosto bonito caiado de pó-de-arroz Cashmere
Bouquet.
Foi antes do sermão. Já Torquato, muito
repicado, se dirigia ao púlpito, quando estacou. Deusilene, no meio da nave,
estava em transe! Esgadelhada, trêmula, com os olhos perdidos e mãos em garra,
soltou um berro estridente que gelou a igreja. Depois da gargalhada insana,
soltou, aos gritos:
-
A muié do Coroné Gardino vaifazê víço co’ home de preto ! - e,
toc-toc-toc, batia com a mão direita
espalmada sobre a esquerda, fechada. Depois, no espavento do transe, deixou a
igreja em disparada, sempre gritando: - É viço... É viço qu’ela vai fazê...
co’home de preto.
Vininho, o prático de farmácia encarregado da botica,
que sempre usava o mesmo terno preto, se encolheu junto a escada do coro, sem
saber onde punha as mãos, atarantado e tomado de horror ante o olhar assassino
que lhe endereçava o Coronel – segundo a vidente –
candidato a corno. Na mesma hora deixou Taruira para não mais voltar.
Torquato,
cosmopolita, não sabia o que era “fazê viço”, mas pelo toc-toc nada ambíguo da Deusilene, entendeu logo. Sem ação, arregalou
os olhos e correu rumo ao altar. Dona Bebiana desmaiou. Coronel ficou roxo
espumando pelos cantos da boca: - Mardita ! Vaca doida! Quem faz viço é tu, fié-da-puta!
Eu te mostro... O coro, numa bem sucedida
tentativa de por fim ao rebuliço, respondeu aos acordes iniciais do harmônio e despejou
bem alto o Magnifiact anima mea a Domine, com o que a missa acabou sob um Ite,
missa est resmungado por Torquato.
Com
o sumiço do Vininho, a vila abrandou. Torquato convenceu o Coronel a não mandar
atrás do prático dois capangas decididos, um deles eficiente capador. Seguiu-se
o jantar, onde as artes culinárias de Dona Bebiana, e o vinho, amansaram os espíritos. Torquato comeu com
gosto meia leitoa assada, uma quarta de farofa e duas porções respeitáveis de macarronada. A
paz reinava na bonomia da ceia amorável. Dona Bebiana não cessava de encher o
copo do padre. Tomada de claros e ruborizantes enlevos, não escondia a satisfação de estar oferecendo
a hóspede tão ilustre uma ceata primorosa
– o que muito lhe aumentaria o prestigio em Taruira.
Mas na rua e nas
casas, na venda, no bilhar, o assunto era o mesmo: Dona Bebiana “fazendo vício”
com o Vininho... E surgiram as dúvidas:
-
Uai, sô, c’o Vininho sumido num vai tê a fuzarca co’a muié do Coroné...
-
E num é qu’ocê tá certo, home?
-
Trem mais doido... Dona Bibiana sortano a racha pro Vininho...
- Logo pro
Vininho, aquele mocorongo?
- Cá, cá, cá,
cá! Mocorongo... Boa essa!
-
É... Mais eu to pensano é notra côsa...
- Âhn? Qui côsa?
- Tô pensano aqui
é se a Deusa errô dessa veiz?
-
Bão, se o Vininho vortá, fica sem os bago... Cumé qu’ele vai acochá a muié do
Coroné?
Véio
Osório, mateiro de longas jornas e
reconhecidos saberes, esperou que se arrefecessem as gargalhadas e considerou a
“qüestã” encerrada:
- É... Faiz
sintido... faiz sintido...
- Intão, a Deusa
faiô!
-
É, faiô mêso, viu?
-
Parece... Mais será qu’a Dona Bibiana tava meso de treta c’o Vininho?
-
Num sei, sô... Mais, s’eu bem se alembro, Deusilene num falô qu’ela feiz viço c’o Vininho, não. Falô ansim qu’ela inha fazê !
-
Qué dizê que num deu tempo?
-
Não... sim... qué dizê, fazê mêso, ela num...
- Qué dizê
qu’ela inda pode fazê...
Face
a raciocínio tão lógico, Véio Osório, meio de banda – nunca
ficava ostensivamente na roda – ponderou:
-
Tomém faiz sintido...
Torquato,
cansado e empanturrado de leitoa e macarronada, fora um pudim de claras com
muita ameixa, aceitou o convite do seu
anfitrião para permanecer na Taruira mais uns dois dias. – Só pur mode discansá
mucado, qu’a festa, pensano bem, inda mais co’aquelas ingrizia da Deusirene, deu pra mexê co’os nervo da gente...
-
Está certo, Coronel. Aceito o seu convite e agradeço. Viajo na terça, de manhã.
De
manhã, bem cedo, Coronel avisou ao Torquato, então refestelado à mesa de café
com bolos e quitandas, que precisava ir à fazenda para separar um lote de reses
que vendera:
-
Num demoro, Pad’Torquato. É só qüestã de separá uma ponta-de-vaca e tô vortano
pro armoço.
Nesse
instante Torquato engasgou com farelos de brevidade que comia e derramou café
na batina. Com um oh! assustado, Dona
Bebiana correu à cozinha, de onde voltou com um pano de prato e uma tigelinha
de água quente: - Acontece, Pad’Torquato... Deixa qu’eu limpo isso num minuto.
Com licença....
Deusilene
sumira, depois do fuzuê. Não a haviam visto em Taruira. Quando o Coronel montou
e seguiu com os capatazes, ela olhou demoradamente a casa. Sem ruído, se
esgueirou da pilha de lenha sob o telheiro anexo e foi se postar sob a janela do quarto onde Dona
Bebiana arfava e dava abafados gritinhos de prazer. Deusilene espichou o olho pela
fresta da janela, mas não viu coisa alguma; a não ser um pano preto atirado à
cabeceira da cama de casal...
No
dia seguinte, terça feira, quando o sol mal saíra, foram as despedidas. Coronel
declinou repetidos agradecimentos a Torquato, desculpando-se por “qualquer
coisa”. Torquato gentilíssimo, Fez questão de dizer que ele, sim, é quem
agradecia; por tudo. Ao se despedir de
Dona Bebiana, deu-lhe um demorado olhar de ternura e, todo pimpão, lhe pôs na mão um tercinho de madrepérola: - Para as suas orações, Dona Bebiana... Ela,
com o rosto em brasa, só conseguiu suspirar, visivelmente emocionada, com a
respiração ofegante.
Na
pracinha, àquela hora deserta, só Véio Osório acompanhou a cena, sem perder um
só movimento das pessoas reunidas no alpendre. Franziu ligeiramente o cenho e
deu um risinho de lado, quando o padre, antes de entrar no carro, alisou
demoradamente a sua batina... preta.
Seguindo
com o olhar o carro que se afastava, Véio Osório balançou a cabeça num gesto
afirmativo e murmurou:
-
Humm... Faiz sintido... .
F I M
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