HISTÓRIA SINGULAR EM UMA VILA PERDIDA
Ao que se
sabia, Mané da Rita não tinha Rita alguma na sua vida; o apelido lhe veio por
conta da canção com que ele iinvariavelmente abria sua cantoria do
entardecer, acomodado no banco da pracinha
:
Eu vô dançá no Arraiá Feijão Quemado,
Eu
vô dança co’a Rita dos pé avermeiado...
Não dava
outra. Dia vinha, dia ia, era o sacristão bater o Angelus na igrejinha da vila
de São Mamede, Mané da Rita – funileiro,
carapina e fino escultor em madeira – se achegava à pracinha. Muito respeitoso,
tirava o chapéu e acompanhava o bleim-blom aguado do sininho, fazendo o Sinal
da Cruz. E ali ficava, olhos fechados, ouvindo o padre rezar a Anunciação do
Anjo. Em seguida conferia a afinação do violão pau-de-quiabo e entoava os seus
cantos, no mais das vezes sofridos.
Havia singela razão para isso. Ela nascera
justamente em remota Hora de Angelus, quando, após uma noite e um dia de
esforço da mãe extenuada, a parteira já o dava por perdido. O padre, sujeito de
crônicos defluxos, naquela tardinha chuvosa estava particularmente encatarrado.
E lá ia ele rezando ao microfone da igrejinha. “E o verbo se fez carne e... rruumm, gglrrrr, ploft! – expulsou do
peito volumosa pelota dos seus catarros eclesiais. Refeito, fungou e deu
sequência à oração: “... e habitou entre
nós”. Até aí nada de extraordinário, não fosse a coincidência, ela sim,
extraordinária, de José Manoel escorregar sem esforço para a luz justa e
exatamente no momento em que, pelas ondas de Hertz, repercutia na vila a sonora
délivrance
catarral do padre.
Domaria Parteira,
tanto quanto a parturiente, era muito chegada aos sobrenaturais, de sorte que
nada lhe custou concluir que o pimpolho era um enviado da Anunciação – razão
mais que eficiente para que ambas o dedicassem ao tocante episódio do anjo anunciador.
Daí José Manoel da Anunciação, que mais tarde seria Mané da Rita – uma Rita
imaginária que só vivia na mente do Mané, a qual tinha os pés avermelhados, que
ele cultivou como um fetiche meio
erótico meio suspiroso.
A vida
seguiu na vila de São Mamede, como noutros lugares; só que lá um dia era cópia
do anterior, como do subsequente, porque ali
os anos eram perfeitamente iguais, sem tirar nem por. E que, talvez por
isso, era uma vila razoavelmente feliz. Padre Ludgero, como vinha fazendo no
decorrer do tempo, pastoreava as almas
locais num ramerrão pasmado de anos a fio, sem acidentes e sem incidentes que o
tirassem da insipidez em que desaguara o
seu sacerdócio. Pobre Ludgero...
Moço, recém
ordenado, já sua fama corria mundo. E as atenções de Roma o pegaram como folha
seca em torvelinho, graças à sua genialidade e extraordinário saber filosófico,
sem contar a tremenda bagagem de conhecimentos científicos, humanísticos, linguísticos e artísticos. Um
sujeito assim não podia engolir dogmas e cânones impregnadas de bolor medieval. Era, portanto,
como declarou expressamente, um livre-pensador. Bateu de frente com a ortodoxia
escolástica de São Tomás e rachou a doutrina dos Santos Padres em feroz sermão
que proferiu no Consistório. E avisou que não podia, dadas as suas convicções,
aceitar a dignidade episcopal. Sua Santidade, à meio passo da apoplexia, ainda
teve força para fazer em pedaços o édito que o nomeava, aos vinte e sete anos,
bispo de Bruxlelas.
Assim e
como Roma não se podia livrar por meios drásticos de um sujeito daquele porte
intelectual, era desterrá-lo para um lugar que por si só neutralizasse os seus
atrevimentos agnósticos. Roma sempre foi pragmática: criou rapidamente o
vicariato do povoado mais ermo de que seus arquivos davam conta e fizeram-no
vigário de São Mamede, povoado tão desvalido que sequer figurava nos registros
IBGE. Ludgero aceitou de bom grado a nova designação, de antemão sabendo que,
graças a ela, poderia, enfim, se dedicar ao que mais gostava de fazer, estudar
e escrever. E lá estava ele na Vila de São Mamede há vastos sessenta e um anos,
feliz e em perfeita paz.
Um dia
aconteceu na vila um fato que embasbacou aquela população amoldada em anos e
anos de monotonia; e que assombrou Mané da Rita, particularmente. Não se soube
donde viera, amanheceu num banco da
pracinha uma cafuza de rosto redondo e cara de sonsa. A bem da verdade não se
sabia dela coisa alguma, mas ela impressionou verdadeiramente o povoado porque
era lindíssima. Ah, sim, Rita era belíssima. Sua cor de garapa queimada, o rosto oval de
olhos amendoados e pestanas longas, encantavam à primeira vista; e o corpo de
proporções magníficas, capaz de congelar respirações, parecia desenhado a régua
francesa, tudo abaixo dos longos cabelos da seda negra dos ancestrais
goitacazes (Padre Ludgero, antropologista ilustre, assim definiu) que
contrastavam com a fieira perolada de dentes da raça yorubá (também conclusão do
padre). Para resumir, Rita era extraordinariamente linda.
Quando a
manhã ainda bocejava e subiam de uma ou outra chaminé as fumacinhas regimentais
de quitandas assando, a vila deu com a desconhecida num banco da pracinha,
estática, olhos fincados no chão, ar assonsado. Vestia uma bata de chita
descorada e tinha nos pés sandálias de sisal; e era perfeitamente muda. O estupor
que envolveu o povoado só amainou quando
alguém lembrou de chamar o padre, sujeito de vastos descortinos, ademais, a voz
ativa do lugar. Ludgero empalideceu quando lhe pôs os olhos. L i l i t h !
– não conseguiu reter a exclamação. Santo Deus, que coisa mais linda aquela
cafuza que surgia na vila como enviada das potestades pagãs! Lilith
reencarnada! Não faltava mais nada... Que
grande sarilho, aquele! Uma aparição assim desgoverna esse buraco... Vai dar
encrenca grossa...
Como a
confirmar-lhe o pensamento, logo o ar se encheu dos cochichos masculinos sobre
os predicamentos corporais da moça, ao que, em contraponto, se elevaram as
murmurações azedas das mulheres. Era fatal. Tanta lindeza não provocaria outra
coisa que a antipatia aquelas matronas enfarruscas de cabelo sarará que
compunham as duas associações religiosas da vila: A Associação de Santa Zita e
a Pia União das Filhas de Maria, as quais, sendo todas mui piedosas, nutriam
entre si acendrados remoques e quizilas mal disfarçadas. Essas coortes, se
tinham em comum a mania do disse-me-disse, eram morfologicamente distintas: as
de Santa Zita, magrelas e ressequidas e como cipó antigo; as da Pia União balançavam corpanzis enxundiosos e suarentos. Padre Ludgero as conhecia bem, uma por uma,
suas confitentes a cada primeira sexta-feira do mês. E foi também por isso que, depois de assuntar os
fogachos masculinas e os muxoxos femininos, decidiu levar a forasteira para a casa paroquial. Na sua
idade, ninguém pensaria mal...
Quando, na praça, Ludgero a chamou de Lilith o povo entendeu que o padre a que chamara de Líli . Ele, é claro, não
desceria a pormenores sobre isso com aquele povo rudimentar. Mas, figuradamente
ou não, a visão que teve foi de Lilith,
a lendária segunda mulher de Adão. Não a
primeira, tida como única, estafermo
desengonçado, feita de costela, mas a adorável e encapetada mulher esculpida em ouro por
Lúcifer – que tinha extraordinário senso
estético – a quem,
com seu sopro infernal
transformou em mulher de carne e osso.
Na vila, ela se tornou assunto nos falatórios das
Domarias.
- Pra mim, essa Líli num é frô que se cheire...
- Né Líli não; é Rita.
- O pade chamo ela de Líli...
- Sei lá cumé que aquele demonho chama!
- E ela tá
lá na casa dele... Vai sabê...
Domaria Parteira,
de falares não contestados no lugar, foi enfática:
- Ói, eu vô falá procês uma coisa: pra mim ela é
muié-dama fugida!
- Crêin-deus-pade!
- Intão Pad’ Ludgero disbanderô!
- Aquela muié tem parte co’Satanais!
O certo é
que, Lilith fora morar na casa paroquial. Ludgero, dentre tantos dons, era um
linguista de fama. Por isso não lhe foi difícil se entender com a sua hóspede
na língua, única, que ela falava: nagô. E ficou sabendo que a cafuza se
chamava Maa’Lita, ou Lita, que na vila virou Rita, provinha de
um quilombo irredutível e não assimilado
que só falava a língua dos yorubás. Fora expulsa da aldeia pelo velho soba que
a cobiçava, quando, numa festa de Oxóssi, um tocador de tumbadora “lhe fizera
mal”.
Com medo
das Domarias da vila, ela mal chegava à varanda da casa paroquial e se tornou
governanta de Ludgero, que gostava da sua companhia e lhe adorava o assado de
coruja com mel, quando ela, de madrugada, saía furtivamente a capturar uma ou
duas dessa ave.
Um dia, Maa’Lita fugiu. Desapareceu sem deixar
rastro. Ninguém se interessou em procurar-lhe pegadas. Tida e havida como amásia do padre, era
mulher amaldiçoada. - Muié de pade vira
mula-sem-cabeça na Coresma! Ludgero
sequer tentou investigar o rumo da cafuza. Nascida e criada em quilombo
arredio, era certamente conhecedora das artes meteiras. Não deixaria marcas da
sua passagem. Depois desse dia não se viu mais o Mané e seu pau-de-quiabo a
cantar na pracinha. A vila estranhou. Foi ver, Mané estava à morte.
Nó-na-tripa, veneno de cobra, espru, terçã,catarro
maligno, até coisa mandada, foram alguns dos muitos diagnósticos que se fizeram, mas Ludgero que estudara patologias
incomuns em Lucerna, sabia que o mal que
atingira Mané da Rita era de outra etiologia; e fatal. Soube, logo que o viu,
que Mané estava ali, estava condenado. E condenado sem salvação, porque ele
simplesmente decidiu morrer. Paixão. Paixão de espavento, desmedida, alvoroçada
, exacerbada, que desandou em desencanto e desespero e resvalou para
invencível ódio da vida, foi a conclusão
do padre. E a causa era Líli/Maa’Lita – ou Rita, como a vila a chamava – que
não lhe retribuíra o amor e, pior, o achava horroroso. Maa’Lita era, sim, de
despertar paixões convulsivas, mas nem foi por isso que Mané da Rita se tomou
de amores por ela. A Rita, aquela “dos pé avermeiado”, que ele louvava nos seus descantes vesperais
ao violão pau-de-quiabo, já foi dito, não era propriamente alguém, uma pessoa
real, terrena, mas um fetiche, uma ideia amalucada, difusa e erótica,
entremeada de angústia profunda. Tanto que, dessa
Rita, sequer imaginara algum dia o rosto e outras particularidades, fixado
somente nos respectivos pés, que, na sua cabeça, tinham ligeira tintura
escarlate; e com a qual ele, em sonhos, vivia repicadas contradanças no Arrial Feijão Queimado. Mas, por essas artes perversas de que o
destino é pródigo, Mané ligou a cafuza à “sua” Rita. Pronto. Num surto sem
controle, a mente azedou, o corpo esmoreceu e Mané da Rita decidiu, sem
apelação, morrer o quanto antes.
Ludgero lhe quis, sem maior insistência, lhe dar a
extrema unção, mas ele rejeitara a reza.
Não ia morrer senão dentro de
três dias, como já havia marcado. Tinha uma tarefa a realizar. Não se sabe a
poder de quê; mas Mané da Rita conseguiu aprumar e se trancou na sua tapera.
Ali se pôs a trabalhar, isolado, sem abrir porta e janela. Só ouviam os rumores
de oficina; em vão o povo tentou descobrir o que ele fazia. Então, ao fim de
três dias, um Mané defecado abriu a
porta e gritou; queria que fossem chamar o padre com urgência.
Ludgero chegou, esbaforido. Deu com o funileiro descaído na enxerga; Mané parecia nas vascas
da morte. Ele mal conseguiu apontar para
um objeto de meio metro de altura, coberto com um pano.
- É... é... pro siô, pade... põe ela lá no artal...
com munta frô involta dela...
Ludgero entendeu que era um adorno para ser colocado
no altar mas... - Ó Meu Deus!
Sob o pano, linda, perfeita em cada detalhe, estava
Santa Rita em cores, esculpida em cedro,
com o hábito negro, a cruz entre as mãos, rodeada de rosas vermelhas. Era, nos
mínimos detalhes, quase vivo, o rosto de Maa’Lita, sem tirar nem por. Mané
acabara de expirar. Pela primeira vez na
vida, ele, Ludgero, livre-pensador e
agnóstico, doutor em todas as ciências, professor de línguas mortas, teólogo
não alinhado, filósofo encanecido entre livros e pergaminhos, vivido em lucubrações esotéricas, chorou copiosamente: Santa Rita tinha os pés avermelhados...
FIM
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