MARLENICE, PADEIRA E CONFEITEIRA
Rubens
Adalberto
Marlenice de Souza, a uma semana de se tornar
sexagenária, concluiu, não sem desgosto, que sua solteirice era eterna.
Costureira de cidade pequena, de escassas rendas e naquela idade, só por
milagre cingiria a grinalda das noivas, numa época de também escassos milagres.
Com refrigerante de guaraná e um pavê encomendado à padaria do Lucas, comemorou
modestamente os sessenta entre as poucas amigas mais o padre local, sujeito doido
por doces, de rara cultura humanística e nem tão acentuadas crenças.
Semana depois
acordou antes da alvorada em transe místico, afogada numa vaga de misticismo
delirante: percebera que tinha vocação... eclesiástica! Padre Cunha tratou de
desiludi-la, mostrando-lhe que o ofício sacerdotal era privativo dos padres
ordenados e, pois, vedado às mulheres. Merlenice, sem se convencer, fez que
aceitou as ponderações de Cunha. Dias mais tarde, voltou à casa paroquial.
Queria saber se não havia, nas celebrações eclesiais, qualquer atividade que não
lhe fosse defesa, uma coadjutoria, um serviço auxiliar que a tornasse mais
próxima dos Santos Mistérios.
Isso
aconteceu quando Roma – percebendo que perdia terreno para os
evangélicos – quebrou o rígido protocolo das celebrações litúrgicas,
e distribuiu entre seu rebanho formosas funções religiosas, entre elas a de
“ministro da eucaristia” – leigo autorizado a portar o cálice bento e
distribuir a hóstia consagrada aos fiéis. Marlenice, extasiada, foi candidata
de primeira hora, logo aceita pelo padre, até mesmo para se livrar das suas
recorrentes e cada vez mais agressivas investidas contra o organograma
eclesiástico.
Custou ao
padre convencê-la de que casula, estola
e outros itens eram alfaias privativas dos padres. Mas em casa ela
cortou, costurou e adornou em rendas, brocados e passamanes as suas próprias
vestimentas rituais – que não usava em público, mas reservadamente vestia para
as suas intermináveis dedicações religiosas pessoais. E era uma enfiada de
rosários, novenas, recitações de antífonas e jaculatórias, cantares de louvor e
tudo o mais que a boa adoração encerra. Marlenice inventou rezas, compôs
cantigas e louvaminhas dedicadas a santos, que distribuía na cidade em folhas
pautadas com seu cursivo arrebicado.
Em breve se
tornou oráculo e dispensária de choramingos e petitórios dirigidos aos céus.
Desde que, supostamente a poder deles, salvou a mulher do Lucas Padeiro, que
por pouco não morre com um caroço de manga ubá parado na garganta, ficou famosa
a sua reza contra engasgo e entalação, que Marlenice inventou na hora,
invocando Santa Águeda; igualmente muito acatados eram seu pronunciamentos
contra caspa e desorientação puerperal. Mas ela era seletiva. Não intervinha em
qualquer situação. Mané Carvoeiro debalde lhe pediu cura para a “gota militar”
que adquirira nalgum puteiro. Marlenice
o repeliu: não curava moléstia contraída em pecado!
Aguardava
com ânsia a missa dominical da 9,00 horas, quando distribuía a comunhão e
zanzava enfatuada junto ao padre, arrumando a dobra de uma toalha ou uma flor
que lhe parecia desgarrada. Com o tempo passou a interromper o padre e fazia
prédicas sobre a consubstanciação, se metia a escolher a homilia dominical ou
declamava coisas alusivas ao ofertório, tudo entremeado de expressões sem nexo num
Latim estropiado. Padre Cunha andava desesperado. Nem mesmo a missa das 6 horas
ele podia rezar em sossego. Duas ou três velhas quietas compareciam às missas
dos dias de semana. Mesmo assim Cunha as antecipou para as 5 e com a igreja
vazia, esteve em paz. Mas as demasias de
Marlenice continuaram. Um dia ela arrebatou
o cálice do padre e queria porque queria aplicar-lhe, a ele, a santa comunhão! Marlenice
endoidava; sua religiosidade desandou em severo caso patológico.
No primeiro
domingo do avento a coisa transbordou. Antes da comunhão Marlenice se esquivou para
a sacristia e vestiu-se de padre. Voltou ao altar com alva, cíngulo, estola e
casula que fizera, todos os paramentos em roxo de advento, segundo o preceito.
Abriu o
sacrário e dele retirou o cálice, que ficou segurando à borda da mesa de
comunhão, desorientando os fiéis. Nesse dia Padre Cunha perdeu a tramontana e a
expulsou da igreja, na mesma veemência e mesma ferocidade com que Adão e Eva
foram santamente evacuados do Éden. Foi aí que a gota faltante caiu no copo
prestes a transbordar.
Dali
Marlenice se dirigiu à padaria do Lucas. Aos domingos, finda a missa, a padaria
virava um enxame de gente. Lucas, além de mestre padeiro, era confeiteiro de
sublimes dotes. Aos seus pães dourados, de craquelé
sugestivo e massa perfeita, se somavam bolos, roscas-darainha, pães de queijo,
brevidades, broas, croissants, biscoitos e tudo o mais dessa arte inefável, inclusive folhados, tortas e pudins, que o
povo disputava para quebrar o jejum após a missa. Pois ali, com os seus
paramentos sacerdotais, entrou Marlenice. Trazia os olhos vidrados, o semblante
alterado do transe incontido. E desandou, a traçar cruzes no ar, “consagrando”
quantos pães e quitandas via nas prateleiras abarrotadas, esgoelando latinórios
incongruentes:
... Ite missa est... ecce lucem tua...
sursum corda... coelum fit Panis... si vis pacem para bellum... roma locuta
causa finita... cogitus cogitatus... e coisas assim. Lucas, apalermado, não sabia o que fazer. Parar
a coisa? Mas... Ora, aquilo parecia coisa santa, inda mais com paramentos coloridos, latins consagradores.
Sabe-se lá que reza é essa? E se fosse pecado ou insubordinação deter as
expensões sagradas da Marlenice? Contrariar a Igreja? Nem pensar. Melhor deixar
assim. E ela lá, cada vez mais destrambelhada, no afã de consagrar o “panis
engelicus”. Assim fora o povo encontrar a padaria e embasbacou.
Ninguém
deixaria de fazer as suas compras de domingo só porque elas estavam sendo
abençoadas. Melhor que as artes do Lucas fossem sagradas pelos céus, se já eram
tão deliciosas sem esse procedimento. Alguém, mordendo um sonho, gritou Lucas jamais havia dado a ele um sabor tão
maravilhoso... Depois, a textura, a cor... O “açuquinha” da rosca se dissolvia
na boca! O farelo do pão-de-coco, que maciez e sabor! As passas das roscas
devem ser importadas...Ah, são! Pronto! O poder da sugestão costuma ser
irresistível quando exercido coletivamente. Como ocorreu. Todos abriram
imediatamente os seus pacotes ali mesmo, arrancando pedaços aos produtos que
haviam comprado, a fim de prová-los e comprovar a excelência deles. A comprovação
foi imediata. Milagre? Toque do dedinho das fadas? Pouco importava. Tudo ali, era
voz corrente, se tinha antes gosto das mesas dos reis, agora tinha sabores de
festejos divinais.
Padre
Cunha, cético, não dava trela ao que julgava crendice. Para ele tanto fazia. Até
que um dia provou o pão de torresmo. Santo Deus! Que era aquilo? O mesmo sentimento,
em grau superlativo, lhe veio ao degustar um mil-folhas com creme patissière: -
Gente! Isso não existe! Ou sugestão também tomou conta de mim? Bom, que seja! Tanto
melhor...
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Marlenice deixou
as suas funções na igreja. Empregou-se com boa renda na padaria, onde exercia a
raríssima função de aprimorar aparências, perfumes e sabores das coisas que
Lucas assava com esmero. Ela tinha o dom e aproveitou os ensinamentos de Lucas
ao ponto de superá-lo. Este, já velho, largou o estabelecimento por conta da
consagradora, e legou a Marlenice, por testamento, o respectivo fundo de
comércio. O nome da casa foi mudado; virou “Chez Marlenice
Boulangerie-Pâtisserie”, denominação idealizada por ela, que o padre verteu
para o Francês. Marlenice. Seu ofício de consagradora foi aperfeiçoado com
extensas frases colhidas a êsmo de textos latinos de Horácio e Santo Agostinho
achados na biblioteca do padre. O Latim dela, antes estropiado, era agora mais
desfigurado e ininteligível.
Na
inauguração do novo estabelecimento Padre Cunha cortou a fita simbólica e
benzeu as instalações. Por ele, àquela altura velho e livre-pensador irredutível, nada a opor: se as
“consagrações” de Marlenice, verdadeiramente ou não, tornava seus pães e bolos
tão especiais, que assim fosse. Afinal,
como disse o inglês em Hamlet, há mais coisas entre o Céu e a Terra do que
supõe a nossa vã filosofia...
Quando o
bispo foi visitá-lo, Padre Cunha foi pessoalmente encomendar a Marlenice um vasto
sortimento de guloseimas. E chamando-a de lado, cochichou:
- Marlenice,
êh... Bom... Quero dizer... Ora, só aqui
entre nós... e que ninguém saiba... mas você me faria o favor de consagrar a
minha encomenda duas vezes? Três, talvez?
Também o
bispo confessou que jamais havia provado coisa igual. Nem na mesa do Papa. Na
verdade, disse, nem sabia que produtos de padaria e confeitaria podiam ser de
tal modo deliciosos. - Absolutamente divinos, completou...
F I M
(*)
O autor adota a ortografia anterior, desprezando o vigente Acordo Ortográfico
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