Na noite
anterior o faraó Amenotep, por alcunha Amenófis IV, da 18ª Dinastia, comera
três gansos recheados com figos, três bolos de mel e duas canadas de vinho. E
na dispepsia feroz que lhe adveio, varou a madrugada entre cochilos intermitentes
e pesadelos. Pela alvorada, a linda Nefertiti, sua esposa, convocou os médicos da corte; deram ao rei um composto de sais espumantes, graças ao que conseguiu dormir, depois de vomitar até a alma. No melhor
desse sono tardio acordou com os cânticos enfadonhos que fluíam dos ofícios religiosos.
Furioso, decidiu-se: era preciso cortar as cristas daqueles sacerdotes gordos e venais que, além de interferir dos negócios do reino e abocanhar
boa parte das rendas governamentais, nada faziam além de esgoelar intermináveis litanias e devastar a ucharia do palácio.
Era uma tarefa de grande
carregação. Sem o apoio do Exército, estava de mãos e pés atados. Os sacerdotes
haviam se encravado na administração, apoiados por Horemheb, o general a quem eles subvencionavam com tenças de alto valor. Além disso, o serviço de
inteligência do trono avisava que Horemheb costurava um golpe de estado para
capturar a coroa dupla dos Dois Egitos. O faraó gastou dias meditando, pesando
estratégias, sem êxito; era muito limitado. Por fim, Nefertiti, lhe deu a solução. O faraó tinha um aliado: o povo, cansado
das exigências e da exploração sacerdotal. Era dia de reverenciar a deusa Muth,
de incensar Athor, de afagar Seth e outros deuses? Cabia ao povo custear as louvações, com
dinheiro ou gêneros. E isso num reino onde a malha divinal era imensa acabava
por espoliar os egípcios. Amenófis IV era um vagotônico, mas Nefertiti, além de bela, era sábia. Sugeriu ao marido
cassar os direitos de quantos deuses e deusas atazanavam o Egito, e
entronizar Aton, o deus único idealizado por Amenófis III, o faraó anterior.
Sim, senhor. Um só deus e chega!
Como tinham os hebreus, povo inteligente. Afinal, um grande número de deuses é
menos garantia de ajuda e salvação do que uma trabalheira infernal. Adorar o
deus disso e o deus daquilo, sobre tomar um tempo enorme e aproveitável no
trabalho útil, leva o adorador à fadiga religiosa, porque “adorar” implica
enaltecer, cantar louvores, acender fogos votivos e outros expedientes - que
manifestem convenientemente a devoção do adorador e contentem satisfatoriamente
a divindade adorada. Demais, deuses são seres entojados e cheios de melindres, temperamentais que se dão aos assomos de ira. Assim, se o temor dos rebentões
raivosos de um só deus já acabrunha o devoto, que se dirá do pavor das
alterações de humor de uma enfiada de deuses, cada qual com suas
idiossincrasias? O povo iria gostar da medida, sem dúvida.
O faraó adotou o plano da esposa.
Mandou os arautos reais apregoar ruidosamente a demissão dos sacerdotes, sem
aviso prévio – primeira demissão em massa da História. E como os deuses
reinantes não teriam quem os paparicasse, também eles eram demissíveis; Aton, o
único, assumiria sozinho a função de proteger o Egito e ele, o faraó, seria o
único sacerdote. O povo, é claro, entrou em delírio e festejou largamente.
Horemheb se acovardou. Para melhor situar a nova ordem divinal, Amenófis mudou
seu nome para Akhenaton, “aquele que brilha para Aton”. Fechou o templo de
Karnak e fundou, mais ao sul, a cidade de Akhetaton, ou “horizonte de Aton”,
para onde transferiu a sede do poder político.
Teria sido um trunfo político,
não fosse a enfermidade que azedou o cérebro de Akhenaton, ex-Amenófis IV. Em
sintonia fina com Aton, o faraó entrou em delírio religioso; passava o dia
compondo madrigais em homenagem ao seu deus, a quem, à noite, endereçava
repicados cantares. Nem mesmo se emocionava com as graças morenas da adorável Nefertiti, a quem sequer dedicava um ligeiro amasso vez ou outra. Tudo era Aton, Aton e mais Aton. Quando seu fanatismo chegou à exacerbação patológica,
Akhenaton pôs de lado as suas responsabilidades de rei e deixou a Administração
à deriva, o reino às portas da fome. Os Dois Egitos murcharam, sob o olhar
complacente de Aton, o solitário. Horemheb e os sacerdotes aproveitaram a maré.
Acusaram o faraó de heresia e o destituíram. Mas o general não ganhou a coroa.
Mais ávidos que nunca, os sacerdotes manobraram o povo - no que eram peritos -
e fizeram subir ao trono o adolescente feioso (diz-se que meio gay)
Tuthankamon.
Aton, obviamente foi “pro brejo”.
Nefertiti, muitos séculos depois sequestrada pelos generais do III Reich, se refugiou no Museu de Berlin, onde está até hoje; consta que, recusando sauerkraut e shnapps, alimenta-se do luar e bebe as aragens do alvorecer. Fim do volátil monoteísmo egípcio. Tebas se recuperou como sede do Poder. A cidade
de Akhetaton foi abandonada; ainda lhe restam os vestígios no lugar hoje
chamado Tell el-Amarna. Pois é. Como sabem os cientistas políticos (mas não
confessam) religião e poder andam de mãos dadas.
É onde eu
te falo...
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