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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O MONOTEÍSMO DE AMENÓFIS IV



            Na noite anterior o faraó Amenotep, por alcunha Amenófis IV, da 18ª Dinastia, comera três gansos recheados com figos, três bolos de mel e duas canadas de vinho. E na dispepsia feroz que lhe adveio, varou a madrugada entre cochilos intermitentes e pesadelos. Pela alvorada, a linda Nefertiti, sua esposa, convocou os médicos da corte; deram ao rei um composto de sais espumantes, graças ao que conseguiu dormir, depois de vomitar até a alma. No melhor desse sono tardio acordou com os cânticos enfadonhos que fluíam dos ofícios religiosos. Furioso, decidiu-se: era preciso cortar as cristas daqueles sacerdotes gordos e venais que, além de interferir dos negócios do reino e abocanhar boa parte das rendas governamentais, nada faziam além de esgoelar intermináveis litanias e devastar a ucharia do palácio.
Era uma tarefa de grande carregação. Sem o apoio do Exército, estava de mãos e pés atados. Os sacerdotes haviam se encravado na administração, apoiados por Horemheb, o general  a quem eles subvencionavam com tenças  de alto valor. Além disso, o serviço de inteligência do trono avisava que Horemheb costurava um golpe de estado para capturar a coroa dupla dos Dois Egitos. O faraó gastou dias meditando, pesando estratégias, sem êxito; era muito limitado. Por fim, Nefertiti, lhe deu a solução. O faraó tinha um aliado: o povo, cansado das exigências e da exploração sacerdotal. Era dia de reverenciar a deusa Muth, de incensar Athor, de afagar Seth e outros deuses? Cabia ao povo custear as louvações, com dinheiro ou gêneros. E isso num reino onde a malha divinal era imensa acabava por espoliar os egípcios. Amenófis IV era um vagotônico, mas Nefertiti, além de bela, era sábia. Sugeriu ao marido cassar os direitos de quantos deuses e deusas atazanavam o Egito, e entronizar Aton, o deus único idealizado por Amenófis III, o faraó anterior.
Sim, senhor. Um só deus e chega! Como tinham os hebreus, povo inteligente. Afinal, um grande número de deuses é menos garantia de ajuda e salvação do que uma trabalheira infernal. Adorar o deus disso e o deus daquilo, sobre tomar um tempo enorme e aproveitável no trabalho útil, leva o adorador à fadiga religiosa, porque “adorar” implica enaltecer, cantar louvores, acender fogos votivos e outros expedientes - que manifestem convenientemente a devoção do adorador e contentem satisfatoriamente a divindade adorada. Demais, deuses são seres entojados e cheios de melindres, temperamentais que se dão aos assomos de ira. Assim, se o temor dos rebentões raivosos de um só deus já acabrunha o devoto, que se dirá do pavor das alterações de humor de uma enfiada de deuses, cada qual com suas idiossincrasias? O povo iria gostar da medida, sem dúvida.
O faraó adotou o plano da esposa. Mandou os arautos reais apregoar ruidosamente a demissão dos sacerdotes, sem aviso prévio – primeira demissão em massa da História. E como os deuses reinantes não teriam quem os paparicasse, também eles eram demissíveis; Aton, o único, assumiria sozinho a função de proteger o Egito e ele, o faraó, seria o único sacerdote. O povo, é claro, entrou em delírio e festejou largamente. Horemheb se acovardou. Para melhor situar a nova ordem divinal, Amenófis mudou seu nome para Akhenaton, “aquele que brilha para Aton”. Fechou o templo de Karnak e fundou, mais ao sul, a cidade de Akhetaton, ou “horizonte de Aton”, para onde transferiu a sede do poder político.
Teria sido um trunfo político, não fosse a enfermidade que azedou o cérebro de Akhenaton, ex-Amenófis IV. Em sintonia fina com Aton, o faraó entrou em delírio religioso; passava o dia compondo madrigais em homenagem ao seu deus, a quem, à noite, endereçava repicados cantares. Nem mesmo se emocionava com as graças morenas da adorável Nefertiti, a quem sequer dedicava um ligeiro amasso vez ou outra. Tudo era Aton, Aton e mais Aton. Quando seu fanatismo chegou à exacerbação patológica, Akhenaton pôs de lado as suas responsabilidades de rei e deixou a Administração à deriva, o reino às portas da fome. Os Dois Egitos murcharam, sob o olhar complacente de Aton, o solitário. Horemheb e os sacerdotes aproveitaram a maré. Acusaram o faraó de heresia e o destituíram. Mas o general não ganhou a coroa. Mais ávidos que nunca, os sacerdotes manobraram o povo - no que eram peritos - e fizeram subir ao trono o adolescente feioso (diz-se que meio gay) Tuthankamon.
Aton, obviamente foi “pro brejo”. Nefertiti, muitos séculos depois sequestrada pelos generais do III Reich, se refugiou no Museu de Berlin, onde está até hoje; consta que, recusando sauerkraut  e shnapps, alimenta-se do luar e bebe as aragens do alvorecer.  Fim do volátil monoteísmo egípcio. Tebas se recuperou como sede do Poder. A cidade de Akhetaton foi abandonada; ainda lhe restam os vestígios no lugar hoje chamado Tell el-Amarna. Pois é. Como sabem os cientistas políticos (mas não confessam) religião e poder andam de mãos dadas.

            É onde eu te falo...       

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