Servi na Legião Estrangeira como corneteiro do forte
Trésor de Sable, comandado pelo Capitão Valéry Giscard d’Estaing. Como, além do
comandante, a guarnição se resumisse a mim (o resto morrera de amargura e
disenteria) cabia-me também o posto de vigia na torre sul do forte.
Quando o sheik Farraj Al-Mouffa’ada, notório combatente
do colonialismo francês, sitiou Trésor de Sable com mil beduínos ferozes,
o capitão se evadiu disfarçado em encantador de serpentes e foi assumir o
governo da França. O forte virou escombros; ficou de pé somente a torre do lado
sul, onde Al-Mouffa’ada dependurou a sua bandeira azul celeste, na qual reinava
um camelo escarlate com um sabre ismaelita entre os dentes. Quanto a mim,
desertei, no rastro de providencial tempestade de areia; coberto de graxa
marrom para calçados e alguns trapos sujos; escapuli passando por vendedor de
água.
Tirante as durezas do clima, foi um tempo de grande
proveito. Aprendi muito sobre a cultura local, inclusive da culinária. Aliás,
tenho ainda um tagine de cerâmica vidrada que me deu o Capitão Giscard
como parte nos despojos de um oásis que a Legião arrasara. Nesse tagine
cozinham-se sobre brasas belos pedaços de carneiro e legumes, prato excelente
para se comer com cuscus e chá de hortelã - lá, em terras de Allah, porque aqui
bebo vinho mesmo.
Mais aprendi no meu tempo de legionário: o capitão era um
sujeito de vasta cultura; e, dado a insônias recorrentes, passava noites
inteiras na minha torre. Nessas ocasiões ele levava duas ou três garrafas de pinot
noir, que bebia sozinho, já que um sentinela não bebe. Ali conversávamos
até o toque de alvorada, depois do que eu ia dormir e ele subia para o seu
cavalo árabe, o fogoso Sheitan, e galopava até o sol ficar intolerável.
A propósito, Sheitan, em língua de beduíno, é o próprio Capeta, razão pela qual
os do deserto a ele se referem como “o maligno”.
Mas o capitão, eu dizia, era um homem sábio (Allah,
porém, é mais sábio!). Giscard estudava coisas e ciências, entendia de arte;
além de perfumista, antropólogo, grande cozinheiro e perigoso espadachim, era
druida honorário, donde sua intimidade com os saberes secretos. Foi ele, M’sieur
le Capitain, que me instruiu sobre a origem da esbórnia festiva que o
mundo conhece por “ménage à trois” - um festival de alcova, triangular, no qual
tomam parte um homem e duas mulheres, na modalidade original; consta outra
forma, com dois homens e uma mulher, mas essa não é regimental.
Pois eu achava que a ménage à trois era uma
invenção francesa. Corrigiu-me o capitão:
- Oh, mais non! Absolument! - e confirmou
que esse divertissement sexuel é uma invenção hebraica!
- Como hebraica? Não me consta que...
-
Oui! C’est une invention hebraïque, mon cher… - e contou a história:
Loth juntou a mulher e as duas filhas, com quem abandonou as terras pecaminosas
do Mar Morto. A mulher de Loth (tentada pelo Sheitan hebreu) queria porque
queria participar dos bailinhos apimentados de Sodoma e Gomorra. Horrorizado,
Loth decidiu levar família pra longe daqueles ermos de perdição. Aliás, foi nas
beiras do Mar Morto que a mulher de Loth desistiu da viagem e do marido:
decidiu se transformar em estátua de sal, destino, segundo ela, melhor do que
acompanhar o velho ortodoxo com quem se casara. Viúvo, Loth seguiu estrada. Lá
um dia, no desconsolo da solidão, emborcou um odre de vinho estragado e
enfoguetou: levou para a cama as duas filhas; ao mesmo tempo! Curiosamente, na
mesma noite emprenhou-as; ambas...
Quando eu falei na implausibilidade dessa dupla
fecundação sincronizada, o capitão me advertiu que Loth recebera ordem superior
para acochar as filhas naquela noite fértil, porque era preciso que nascessem
Amon e Moab, que dariam origem a amonitas e moabitas, povos bravios que fariam
frente aos hebreus de Móisés na corrida para Canaã.
- Então foi isso! Uma história deveras...
- Extraordinaire! - completou o capitão, chupando
o último pinot noir no gargalo.
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