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quinta-feira, 17 de setembro de 2015



                                                       
                                                    MARLENICE, PADEIRA E CONFEITEIRA


   Rubens Adalberto

                Marlenice de Souza, a uma semana de se tornar sexagenária, concluiu, não sem desgosto, que sua solteirice era eterna. Costureira de cidade pequena, de escassas rendas e naquela idade, só por milagre cingiria a grinalda das noivas, numa época de também escassos milagres. Com refrigerante de guaraná e um pavê encomendado à padaria do Lucas, comemorou modestamente os sessenta entre as poucas amigas mais o padre local, sujeito doido por doces, de rara cultura humanística e nem tão acentuadas crenças.
Semana depois acordou antes da alvorada em transe místico, afogada numa vaga de misticismo delirante: percebera que tinha vocação... eclesiástica! Padre Cunha tratou de desiludi-la, mostrando-lhe que o ofício sacerdotal era privativo dos padres ordenados e, pois, vedado às mulheres. Merlenice, sem se convencer, fez que aceitou as ponderações de Cunha. Dias mais tarde, voltou à casa paroquial. Queria saber se não havia, nas celebrações eclesiais, qualquer atividade que não lhe fosse defesa, uma coadjutoria, um serviço auxiliar que a tornasse mais próxima dos Santos Mistérios.
Isso aconteceu quando Roma   percebendo que perdia terreno para os evangélicos    quebrou o rígido protocolo das celebrações litúrgicas, e distribuiu entre seu rebanho formosas funções religiosas, entre elas a de “ministro da eucaristia” – leigo autorizado a portar o cálice bento e distribuir a hóstia consagrada aos fiéis. Marlenice, extasiada, foi candidata de primeira hora, logo aceita pelo padre, até mesmo para se livrar das suas recorrentes e cada vez mais agressivas investidas contra o organograma eclesiástico.
Custou ao padre convencê-la de que casula, estola  e outros itens eram alfaias privativas dos padres. Mas em casa ela cortou, costurou e adornou em rendas, brocados e passamanes as suas próprias vestimentas rituais – que não usava em público, mas reservadamente vestia para as suas intermináveis dedicações religiosas pessoais. E era uma enfiada de rosários, novenas, recitações de antífonas e jaculatórias, cantares de louvor e tudo o mais que a boa adoração encerra. Marlenice inventou rezas, compôs cantigas e louvaminhas dedicadas a santos, que distribuía na cidade em folhas pautadas com seu cursivo arrebicado.
Em breve se tornou oráculo e dispensária de choramingos e petitórios dirigidos aos céus. Desde que, supostamente a poder deles, salvou a mulher do Lucas Padeiro, que por pouco não morre com um caroço de manga ubá parado na garganta, ficou famosa a sua reza contra engasgo e entalação, que Marlenice inventou na hora, invocando Santa Águeda; igualmente muito acatados eram seu pronunciamentos contra caspa e desorientação puerperal.  Mas ela era seletiva. Não intervinha em qualquer situação. Mané Carvoeiro debalde lhe pediu cura para a “gota militar” que adquirira nalgum puteiro.   Marlenice o repeliu: não curava moléstia contraída em pecado!   
Aguardava com ânsia a missa dominical da 9,00 horas, quando distribuía a comunhão e zanzava enfatuada junto ao padre, arrumando a dobra de uma toalha ou uma flor que lhe parecia desgarrada. Com o tempo passou a interromper o padre e fazia prédicas sobre a consubstanciação, se metia a escolher a homilia dominical ou declamava coisas alusivas ao ofertório, tudo entremeado de expressões sem nexo num Latim estropiado. Padre Cunha andava desesperado. Nem mesmo a missa das 6 horas ele podia rezar em sossego. Duas ou três velhas quietas compareciam às missas dos dias de semana. Mesmo assim Cunha as antecipou para as 5 e com a igreja vazia, esteve em paz.  Mas as demasias de Marlenice continuaram.  Um dia ela arrebatou o cálice do padre e queria porque queria aplicar-lhe, a ele, a santa comunhão! Marlenice endoidava; sua religiosidade desandou em severo caso patológico.  
No primeiro domingo do avento a coisa transbordou. Antes da comunhão Marlenice se esquivou para a sacristia e vestiu-se de padre. Voltou ao altar com alva, cíngulo, estola e casula que fizera, todos os paramentos em roxo de advento, segundo o preceito.
Abriu o sacrário e dele retirou o cálice, que ficou segurando à borda da mesa de comunhão, desorientando os fiéis. Nesse dia Padre Cunha perdeu a tramontana e a expulsou da igreja, na mesma veemência e mesma ferocidade com que Adão e Eva foram santamente evacuados do Éden. Foi aí que a gota faltante caiu no copo prestes a transbordar.
   Dali Marlenice se dirigiu à padaria do Lucas. Aos domingos, finda a missa, a padaria virava um enxame de gente. Lucas, além de mestre padeiro, era confeiteiro de sublimes dotes. Aos seus pães dourados, de craquelé sugestivo e massa perfeita, se somavam bolos, roscas-darainha, pães de queijo, brevidades, broas, croissants, biscoitos e tudo o mais dessa arte inefável,  inclusive folhados, tortas e pudins, que o povo disputava para quebrar o jejum após a missa. Pois ali, com os seus paramentos sacerdotais, entrou Marlenice. Trazia os olhos vidrados, o semblante alterado do transe incontido. E desandou, a traçar cruzes no ar, “consagrando” quantos pães e quitandas via nas prateleiras abarrotadas, esgoelando latinórios incongruentes:
... Ite missa est... ecce lucem tua... sursum corda... coelum fit Panis... si vis pacem para bellum... roma locuta causa finita... cogitus cogitatus... e coisas assim.  Lucas, apalermado, não sabia o que fazer. Parar a coisa? Mas... Ora, aquilo parecia coisa santa, inda mais com  paramentos coloridos, latins consagradores. Sabe-se lá que reza é essa? E se fosse pecado ou insubordinação deter as expensões sagradas da Marlenice? Contrariar a Igreja? Nem pensar. Melhor deixar assim. E ela lá, cada vez mais destrambelhada, no afã de consagrar o “panis engelicus”. Assim fora o povo encontrar a padaria e embasbacou.
Ninguém deixaria de fazer as suas compras de domingo só porque elas estavam sendo abençoadas. Melhor que as artes do Lucas fossem sagradas pelos céus, se já eram tão deliciosas sem esse procedimento. Alguém, mordendo um sonho, gritou  Lucas jamais havia dado a ele um sabor tão maravilhoso... Depois, a textura, a cor... O “açuquinha” da rosca se dissolvia na boca! O farelo do pão-de-coco, que maciez e sabor! As passas das roscas devem ser importadas...Ah, são! Pronto! O poder da sugestão costuma ser irresistível quando exercido coletivamente. Como ocorreu. Todos abriram imediatamente os seus pacotes ali mesmo, arrancando pedaços aos produtos que haviam comprado, a fim de prová-los e comprovar a excelência deles. A comprovação foi imediata. Milagre? Toque do dedinho das fadas? Pouco importava. Tudo ali, era voz corrente, se tinha antes gosto das mesas dos reis, agora tinha sabores de festejos divinais.
Padre Cunha, cético, não dava trela ao que julgava crendice. Para ele tanto fazia. Até que um dia provou o pão de torresmo.  Santo Deus! Que era aquilo? O mesmo sentimento, em grau superlativo, lhe veio ao degustar um mil-folhas com creme patissière: - Gente! Isso não existe! Ou sugestão também tomou conta de mim? Bom, que seja! Tanto melhor... 
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Marlenice deixou as suas funções na igreja. Empregou-se com boa renda na padaria, onde exercia a raríssima função de aprimorar aparências, perfumes e sabores das coisas que Lucas assava com esmero. Ela tinha o dom e aproveitou os ensinamentos de Lucas ao ponto de superá-lo. Este, já velho, largou o estabelecimento por conta da consagradora, e legou a Marlenice, por testamento, o respectivo fundo de comércio. O nome da casa foi mudado; virou “Chez Marlenice Boulangerie-Pâtisserie”, denominação idealizada por ela, que o padre verteu para o Francês. Marlenice. Seu ofício de consagradora foi aperfeiçoado com extensas frases colhidas a êsmo de textos latinos de Horácio e Santo Agostinho achados na biblioteca do padre. O Latim dela, antes estropiado, era agora mais desfigurado e ininteligível.
Na inauguração do novo estabelecimento Padre Cunha cortou a fita simbólica e benzeu as instalações. Por ele, àquela altura velho e  livre-pensador irredutível, nada a opor: se as “consagrações” de Marlenice, verdadeiramente ou não, tornava seus pães e bolos tão  especiais, que assim fosse. Afinal, como disse o inglês em Hamlet, há mais coisas entre o Céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia...
Quando o bispo foi visitá-lo, Padre Cunha foi pessoalmente encomendar a Marlenice um vasto sortimento de guloseimas. E chamando-a de lado, cochichou:
- Marlenice, êh... Bom... Quero dizer...  Ora, só aqui entre nós... e que ninguém saiba... mas você me faria o favor de consagrar a minha encomenda duas vezes? Três, talvez?
Também o bispo confessou que jamais havia provado coisa igual. Nem na mesa do Papa. Na verdade, disse, nem sabia que produtos de padaria e confeitaria podiam ser de tal modo deliciosos. - Absolutamente divinos, completou... 

                           F I M


(*) O autor adota a ortografia anterior, desprezando o vigente Acordo Ortográfico

terça-feira, 25 de março de 2014



 

                                  









                                                          
                                         SEGREDOS   EM   TEMPO   DE   ADVENTO

            Deusilene Aparecida de Jesus, vulgo Deusa, filha de Deusdete e Marlene – ambos igualmente de Jesus    nasceu  absoluta,  justa razão para que Taruiras neles se louvasse como em certidão de fé pública. Naquele lugar de vaga localização e aguadas ocorrências, um simples vislumbre, até um palpite de Deusirene virava premonição; e com a irreversibilidade  de decisão irrecorrível. Deusilene previu,  sentiu, teve um lampejo... batata !    ninguém duvidava de que a coisa aconteceria. E acontecia, de fato.
            Então, se os presságios de Deusilene eram de bom agouro, comemoravam-nos com antecedência; se eram maus, curtiam-se os prantos e a agonia, também por antecipação. Sim, pois o que os Fados deram a Deusirene em prodígios da percepção pré-cognitiva, retiraram-lhe de siso e juízo crítico. Para ela não havia meias medidas: trágicas ou festivas, as previsões que lhe vinham  ela as divulgava imediata e igualmente, sem dar  importância aos respectivos conseguintes. Em vão os pais e o povo em geral lhe pediam que se calasse relativamente aos porvires amargurosos e se limitasse a apregoar somente os de alegria. Qual! A Deusilene faltava o sentido da discrição e da piedade.
Vira e mexe, onde estivesse, ela se alheava  em transe catatônico, vidrava os olhos e eriçava os cabelos. Era o sinal. As almas de Taruira gelavam de pavor. Sonhar coisas boas se chama esperança, sentimento forte mo ser humano; no entanto, muito mais forte, e mais cáustico, é o sentimento oposto    o   medo,  para o qual foi o homem idealizado e é uma das maldições que o acompanham desde a Criação. Quando se via que Deusilene estava tendo um presságio, as respirações ficavam suspensas. A esperança não sumia, propriamente, mas tanto se acanhava ante a ferocidade do medo, que desfalecia.  O que virá? Quem vai ser a vítima da vez? Eram as indagações silenciosas que mal se escondiam entre os risos amarelos dos que, com as entranhas  cheias de pavor, murmuravam nada convincentes “é preciso ter pensamento positivo”.           
  
            Pois era um sábado à tardinha, quando surgiu em Taruira o padre Torquato Silvestre, pregador de fama.  Aguardava-o, todo ufano em terno de brim claro,  o maioral da cidade, Coronel  Firmino Ferreira, que lhe abriu a porta do carro. Torquato, seboso e altaneiro, apeou, correu os olhos entojados pela pracinha da vila e entrou na casa do Coronel , que se desmanchava em  salamaleques sobre o visitante e destilava orgulho sobre os tabaréus locais. Dona Bebiana Ferreira os aguardava na soleira do alpendre  e acorreu num cumprimento de cerimônia, com o regimental  “louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”, que o padre respondeu num aguado “para sempre seja louvado”. Coronel  era, por assim dizer, o dono do lugar, por ser dono do armazém, da botica, do matadouro, das tropas  e criador forte de gado gir. Fazia anos no dia seguinte, Domingo do Advento, de modo que Torquato lhe vinha celebrar a missa das dez, a título de ação de graças. 
            Nem dera as nove e a igrejinha, recém lavada, espanada e florida, já se abarrotava de gente, fora os que, amontoados no adro, enfarpelados e glostorados, comentavam o grande evento. Afinal, acontecimento daquele porte era novidade em Taruira. O coro das beatas ensaiava mais uma vez o  Ave Verum Corpus  para o fundo musical da Consagração, quando o sino anunciou a entrada do pregador. Torquato  vinha resplandecente numa casula prata e verde, orlada de passamanaria roxa, cheia de alamares, fitilhos de todas as cores e pedrarias em profusão   um  arco-íris desvairado.
            - Introibo ad altare Dei...
            Dona Bebiana Ferreira, com suas gordurinhas contidas em vistoso modelo de tafetá  vermelho, estufafa de júbilos piedosos, exibindo suas exuberâncias corporais, o rosto bonito caiado de pó-de-arroz  Cashmere Bouquet.  

             Foi antes do sermão. Já Torquato, muito repicado, se dirigia ao púlpito, quando estacou. Deusilene, no meio da nave, estava em transe! Esgadelhada, trêmula, com os olhos perdidos e mãos em garra, soltou um berro estridente que gelou a igreja. Depois da gargalhada insana, soltou, aos gritos:
            - A muié do Coroné Gardino vaifazê víço co’ home de preto !  - e, toc-toc-toc, batia com a  mão direita espalmada sobre a esquerda, fechada. Depois, no espavento do transe, deixou a igreja em disparada, sempre gritando: - É viço... É viço qu’ela vai fazê... co’home de preto.
Vininho,  o prático de farmácia encarregado da botica, que sempre usava o mesmo terno preto, se encolheu junto a escada do coro, sem saber onde punha as mãos, atarantado e tomado de horror ante o olhar assassino que lhe endereçava o Coronel    segundo a vidente    candidato a corno. Na mesma hora deixou Taruira para não mais voltar.
Torquato, cosmopolita, não sabia o que era “fazê viço”, mas pelo toc-toc nada ambíguo da Deusilene, entendeu logo. Sem ação, arregalou os olhos e correu rumo ao altar. Dona Bebiana desmaiou. Coronel ficou roxo espumando pelos cantos da boca: - Mardita ! Vaca doida! Quem faz viço é tu, fié-da-puta!  Eu te mostro... O coro, numa bem sucedida tentativa de por fim ao rebuliço, respondeu aos acordes iniciais do harmônio e despejou bem alto o Magnifiact anima mea a Domine,  com o que a missa acabou sob um  Ite, missa est  resmungado por Torquato.

            Com o sumiço do Vininho, a vila abrandou. Torquato convenceu o Coronel a não mandar atrás do prático dois capangas decididos, um deles eficiente capador. Seguiu-se o jantar, onde as artes culinárias de Dona Bebiana, e o vinho,  amansaram os espíritos. Torquato comeu com gosto meia leitoa assada, uma quarta de farofa  e duas porções respeitáveis de macarronada. A paz reinava na bonomia da ceia amorável. Dona Bebiana não cessava de encher o copo do padre. Tomada de claros e ruborizantes enlevos,  não escondia a satisfação de estar oferecendo a hóspede tão ilustre uma ceata primorosa  – o que muito lhe aumentaria o prestigio em Taruira.
Mas na rua e nas casas, na venda, no bilhar, o assunto era o mesmo: Dona Bebiana “fazendo vício” com o Vininho... E surgiram as dúvidas:
            - Uai, sô, c’o Vininho sumido num vai tê a fuzarca co’a muié do Coroné...
            - E num é qu’ocê tá certo, home?
            - Trem mais doido... Dona Bibiana sortano a racha pro Vininho...
- Logo pro Vininho, aquele mocorongo?
- Cá, cá, cá, cá!  Mocorongo... Boa essa!
            - É... Mais eu to pensano é notra côsa...
- Âhn? Qui côsa?
- Tô pensano aqui é se a Deusa errô dessa veiz?
            - Bão, se o Vininho vortá, fica sem os bago... Cumé qu’ele vai acochá a muié do Coroné?
            Véio  Osório, mateiro de longas jornas e reconhecidos saberes, esperou que se arrefecessem as gargalhadas e considerou a “qüestã”  encerrada:
- É... Faiz sintido... faiz sintido...   
- Intão, a Deusa faiô!
            - É, faiô mêso, viu?
            - Parece... Mais será qu’a Dona Bibiana tava meso de treta c’o Vininho?
            - Num sei, sô... Mais, s’eu bem se alembro, Deusilene num falô qu’ela  feiz  viço c’o Vininho, não. Falô ansim qu’ela inha fazê !   
            - Qué dizê que num deu tempo?
            - Não... sim... qué dizê, fazê mêso, ela num...
- Qué dizê qu’ela inda pode fazê...
            Face a raciocínio tão lógico, Véio Osório, meio de banda   nunca ficava ostensivamente na roda   ponderou:
            - Tomém faiz sintido...

            Torquato, cansado e empanturrado de leitoa e macarronada, fora um pudim de claras com muita ameixa,  aceitou o convite do seu anfitrião para permanecer na Taruira mais uns dois dias. – Só pur mode discansá mucado, qu’a festa, pensano bem, inda mais co’aquelas  ingrizia da Deusirene,  deu pra mexê co’os nervo da gente...  
            - Está certo, Coronel. Aceito o seu convite e agradeço. Viajo na terça, de manhã.
            De manhã, bem cedo, Coronel avisou ao Torquato, então refestelado à mesa de café com bolos e quitandas, que precisava ir à fazenda para separar um lote de reses que vendera:
            - Num demoro, Pad’Torquato. É só qüestã de separá uma ponta-de-vaca e tô vortano pro armoço.
            Nesse instante Torquato engasgou com farelos de brevidade que comia e derramou café na batina. Com um oh! assustado, Dona Bebiana correu à cozinha, de onde voltou com um pano de prato e uma tigelinha de água quente: - Acontece, Pad’Torquato... Deixa qu’eu limpo isso num minuto. Com licença....  

            Deusilene sumira, depois do fuzuê. Não a haviam visto em Taruira. Quando o Coronel montou e seguiu com os capatazes, ela olhou demoradamente a casa. Sem ruído, se esgueirou da pilha de lenha sob o telheiro anexo e  foi se postar sob a janela do quarto onde Dona Bebiana arfava e dava abafados gritinhos de prazer. Deusilene espichou o olho pela fresta da janela, mas não viu coisa alguma; a não ser um pano preto atirado à cabeceira da cama de casal...
            No dia seguinte, terça feira, quando o sol mal saíra, foram as despedidas. Coronel declinou repetidos agradecimentos a Torquato, desculpando-se por “qualquer coisa”. Torquato gentilíssimo, Fez questão de dizer que ele, sim, é quem agradecia; por  tudo. Ao se despedir de Dona Bebiana, deu-lhe um demorado olhar de ternura e, todo pimpão,  lhe pôs na mão um tercinho de madrepérola:  - Para as suas orações, Dona Bebiana... Ela, com o rosto em brasa, só conseguiu suspirar, visivelmente emocionada, com a respiração ofegante.
            Na pracinha, àquela hora deserta, só Véio Osório acompanhou a cena, sem perder um só movimento das pessoas reunidas no alpendre. Franziu ligeiramente o cenho e deu um risinho de lado, quando o padre, antes de entrar no carro, alisou demoradamente a sua batina... preta.
            Seguindo com o olhar o carro que se afastava, Véio Osório balançou a cabeça num gesto afirmativo e murmurou:
            - Humm... Faiz sintido... .

                                              
                                                                    F I M
             


sábado, 1 de fevereiro de 2014



               
                              HISTÓRIA SINGULAR EM UMA VILA PERDIDA


Ao que se sabia, Mané da Rita não tinha Rita alguma na sua vida; o apelido lhe veio por conta da canção com que ele  iinvariavelmente abria sua cantoria do entardecer, acomodado no banco da pracinha :
                                           
                                               Eu vô dançá no Arraiá Feijão Quemado,
                                               Eu vô dança co’a Rita dos pé avermeiado...
               
Não dava outra. Dia vinha, dia ia, era o sacristão bater o Angelus na igrejinha da vila de São Mamede, Mané da Rita  – funileiro, carapina  e fino escultor em madeira  – se achegava à pracinha. Muito respeitoso, tirava o chapéu e acompanhava o bleim-blom aguado do sininho, fazendo o Sinal da Cruz. E ali ficava, olhos fechados, ouvindo o padre rezar a Anunciação do Anjo. Em seguida conferia a afinação do violão pau-de-quiabo e entoava os seus cantos, no mais das vezes sofridos.
 Havia singela razão para isso. Ela nascera justamente em remota Hora de Angelus, quando, após uma noite e um dia de esforço da mãe extenuada, a parteira já o dava por perdido. O padre, sujeito de crônicos defluxos, naquela tardinha chuvosa estava particularmente encatarrado. E lá ia ele rezando ao microfone da igrejinha. “E o verbo se fez carne e... rruumm, gglrrrr, ploft! – expulsou do peito volumosa pelota dos seus catarros eclesiais. Refeito, fungou e deu sequência à oração:  “... e habitou entre nós”. Até aí nada de extraordinário, não fosse a coincidência, ela sim, extraordinária, de José Manoel escorregar sem esforço para a luz justa e exatamente no momento em que, pelas ondas de Hertz, repercutia na vila a sonora  délivrance  catarral do padre.
Domaria Parteira, tanto quanto a parturiente, era muito chegada aos sobrenaturais, de sorte que nada lhe custou concluir que o pimpolho era um enviado da Anunciação   razão mais que eficiente para que ambas o dedicassem ao tocante episódio do anjo anunciador. Daí José Manoel da Anunciação, que mais tarde seria Mané da Rita – uma Rita imaginária que só vivia na mente do Mané, a qual tinha os pés avermelhados, que ele cultivou como  um fetiche meio erótico meio suspiroso.

A vida seguiu na vila de São Mamede, como noutros lugares; só que lá um dia era cópia do anterior, como do subsequente, porque ali  os anos eram perfeitamente iguais, sem tirar nem por. E que, talvez por isso, era uma vila razoavelmente feliz. Padre Ludgero, como vinha fazendo no decorrer do tempo,  pastoreava as almas locais num ramerrão pasmado de anos a fio, sem acidentes e sem incidentes que o tirassem da insipidez  em que desaguara o seu sacerdócio. Pobre Ludgero...
Moço, recém ordenado, já sua fama corria mundo. E as atenções de Roma o pegaram como folha seca em torvelinho, graças à sua genialidade e extraordinário saber filosófico, sem contar a tremenda bagagem de conhecimentos científicos,  humanísticos, linguísticos e artísticos. Um sujeito assim não podia engolir dogmas e cânones  impregnadas de bolor medieval. Era, portanto, como declarou expressamente, um livre-pensador. Bateu de frente com a ortodoxia escolástica de São Tomás e rachou a doutrina dos Santos Padres em feroz sermão que proferiu no Consistório. E avisou que não podia, dadas as suas convicções, aceitar a dignidade episcopal. Sua Santidade, à meio passo da apoplexia, ainda teve força para fazer em pedaços o édito que o nomeava, aos vinte e sete anos, bispo de Bruxlelas.    
Assim e como Roma não se podia livrar por meios drásticos de um sujeito daquele porte intelectual, era desterrá-lo para um lugar que por si só neutralizasse os seus atrevimentos agnósticos. Roma sempre foi pragmática: criou rapidamente o vicariato do povoado mais ermo de que seus arquivos davam conta e fizeram-no vigário de São Mamede, povoado tão desvalido que sequer figurava nos registros IBGE. Ludgero aceitou de bom grado a nova designação, de antemão sabendo que, graças a ela, poderia, enfim, se dedicar ao que mais gostava de fazer, estudar e escrever. E lá estava ele na Vila de São Mamede há vastos sessenta e um anos, feliz e em perfeita paz.

Um dia aconteceu na vila um fato que embasbacou aquela população amoldada em anos e anos de monotonia; e que assombrou Mané da Rita, particularmente. Não se soube donde viera,  amanheceu num banco da pracinha uma cafuza de rosto redondo e cara de sonsa. A bem da verdade não se sabia dela coisa alguma, mas ela impressionou verdadeiramente o povoado porque era lindíssima. Ah, sim, Rita era belíssima.  Sua cor de garapa queimada, o rosto oval de olhos amendoados e pestanas longas, encantavam à primeira vista; e o corpo de proporções magníficas, capaz de congelar respirações, parecia desenhado a régua francesa, tudo abaixo dos longos cabelos da seda negra dos ancestrais goitacazes (Padre Ludgero, antropologista ilustre, assim definiu) que contrastavam com a fieira perolada de dentes da raça yorubá (também conclusão do padre). Para resumir, Rita era extraordinariamente linda.   

Quando a manhã ainda bocejava e subiam de uma ou outra chaminé as fumacinhas regimentais de quitandas assando, a vila deu com a desconhecida num banco da pracinha, estática, olhos fincados no chão, ar assonsado. Vestia uma bata de chita descorada e tinha nos pés sandálias de sisal; e era perfeitamente muda. O estupor  que envolveu o povoado só amainou quando alguém lembrou de chamar o padre, sujeito de vastos descortinos, ademais, a voz ativa do lugar. Ludgero empalideceu quando lhe pôs os olhos.  L i l i t h ! – não conseguiu reter a exclamação. Santo Deus, que coisa mais linda aquela cafuza que surgia na vila como enviada das potestades pagãs!  Lilith reencarnada! Não faltava mais nada...  Que grande sarilho, aquele! Uma aparição assim desgoverna esse buraco... Vai dar encrenca grossa...
Como a confirmar-lhe o pensamento, logo o ar se encheu dos cochichos masculinos sobre os predicamentos corporais da moça, ao que, em contraponto, se elevaram as murmurações azedas das mulheres. Era fatal. Tanta lindeza não provocaria outra coisa que a antipatia aquelas matronas enfarruscas de cabelo sarará que compunham as duas associações religiosas da vila: A Associação de Santa Zita e a Pia União das Filhas de Maria, as quais, sendo todas mui piedosas, nutriam entre si acendrados remoques e quizilas mal disfarçadas. Essas coortes, se tinham em comum a mania do disse-me-disse, eram morfologicamente distintas: as de Santa Zita, magrelas e ressequidas e como cipó antigo; as da Pia União  balançavam corpanzis enxundiosos e suarentos.  Padre Ludgero as conhecia bem, uma por uma, suas confitentes a cada primeira sexta-feira do mês.  E foi também por isso que, depois de assuntar os fogachos masculinas e os muxoxos femininos, decidiu levar  a forasteira para a casa paroquial. Na sua idade, ninguém pensaria mal...

                Quando, na praça, Ludgero a chamou de Lilith o povo entendeu que o padre a que  chamara de Líli . Ele, é claro, não desceria a pormenores sobre isso com aquele povo rudimentar. Mas, figuradamente ou não, a visão que teve foi de  Lilith, a lendária segunda mulher de Adão.  Não a primeira, tida como única,  estafermo  desengonçado, feita de costela, mas a adorável  e encapetada mulher esculpida em ouro por Lúcifer  – que tinha extraordinário senso estético    a quem,  com seu sopro infernal  transformou em mulher de carne e osso.
                Na vila, ela se tornou assunto nos falatórios das Domarias.
                - Pra mim, essa Líli num é frô que se cheire...
                - Né Líli não; é Rita.
                - O pade chamo ela de Líli...
                - Sei lá cumé que aquele demonho chama!       
    - E ela tá lá na casa dele...  Vai sabê...
                Domaria Parteira, de falares não contestados no lugar, foi enfática:
                - Ói, eu vô falá procês uma coisa: pra mim ela é muié-dama fugida!
                - Crêin-deus-pade!
    -  Intão Pad’ Ludgero disbanderô!
                - Aquela muié tem parte co’Satanais!

O certo é que, Lilith fora morar na casa paroquial. Ludgero, dentre tantos dons, era um linguista de fama. Por isso não lhe foi difícil se entender com a sua hóspede na língua, única, que ela falava: nagô. E ficou sabendo que a cafuza se chamava  Maa’Lita,  ou Lita, que na vila virou Rita, provinha de um quilombo irredutível  e não assimilado que só falava a língua dos yorubás. Fora expulsa da aldeia pelo velho soba que a cobiçava, quando, numa festa de Oxóssi, um tocador de tumbadora “lhe fizera mal”.
Com medo das Domarias da vila, ela mal chegava à varanda da casa paroquial e se tornou governanta de Ludgero, que gostava da sua companhia e lhe adorava o assado de coruja com mel, quando ela, de madrugada, saía furtivamente a capturar uma ou duas dessa ave.  
                Um dia, Maa’Lita fugiu. Desapareceu sem deixar rastro. Ninguém se interessou em procurar-lhe pegadas.  Tida e havida como amásia do padre, era mulher amaldiçoada.  - Muié de pade vira mula-sem-cabeça na Coresma!  Ludgero sequer tentou investigar o rumo da cafuza. Nascida e criada em quilombo arredio, era certamente conhecedora das artes meteiras. Não deixaria marcas da sua passagem. Depois desse dia não se viu mais o Mané e seu pau-de-quiabo a cantar na pracinha. A vila estranhou. Foi  ver, Mané estava à morte.

                Nó-na-tripa, veneno de cobra, espru, terçã,catarro maligno, até coisa mandada, foram alguns dos muitos diagnósticos  que se fizeram, mas Ludgero que estudara patologias incomuns  em Lucerna, sabia que o mal que atingira Mané da Rita era de outra etiologia; e fatal. Soube, logo que o viu, que Mané estava ali, estava condenado. E condenado sem salvação, porque ele simplesmente decidiu morrer. Paixão. Paixão de espavento, desmedida, alvoroçada , exacerbada, que desandou em desencanto e desespero e resvalou para invencível  ódio da vida, foi a conclusão do padre. E a causa era Líli/Maa’Lita   ou Rita, como a vila a chamava    que não lhe retribuíra o amor e, pior, o achava horroroso. Maa’Lita era, sim, de despertar paixões convulsivas, mas nem foi por isso que Mané da Rita se tomou de amores por ela. A Rita, aquela “dos pé avermeiado”,  que ele louvava nos seus descantes vesperais ao violão pau-de-quiabo, já foi dito, não era propriamente alguém, uma pessoa real, terrena, mas um fetiche, uma ideia amalucada, difusa e erótica, entremeada de angústia profunda. Tanto que, dessa Rita, sequer imaginara algum dia o rosto e outras particularidades, fixado somente nos respectivos pés, que, na sua cabeça, tinham ligeira tintura escarlate; e com a qual ele, em sonhos, vivia repicadas contradanças  no Arrial Feijão Queimado.  Mas, por essas artes perversas de que o destino é pródigo, Mané ligou a cafuza à “sua” Rita. Pronto. Num surto sem controle, a mente azedou, o corpo esmoreceu e Mané da Rita decidiu, sem apelação, morrer o quanto antes.

                Ludgero lhe quis, sem maior insistência, lhe dar a extrema  unção, mas ele rejeitara a reza.
Não ia morrer senão dentro de três dias, como já havia marcado. Tinha uma tarefa a realizar. Não se sabe a poder de quê; mas Mané da Rita conseguiu aprumar e se trancou na sua tapera. Ali se pôs a trabalhar, isolado, sem abrir porta e janela. Só ouviam os rumores de oficina; em vão o povo tentou descobrir o que ele fazia. Então, ao fim de três dias, um Mané  defecado abriu a porta e gritou; queria que fossem chamar o padre com urgência.
                Ludgero chegou, esbaforido. Deu com o funileiro  descaído na enxerga; Mané parecia nas vascas da morte.  Ele mal conseguiu apontar para um objeto de meio metro de altura, coberto com um pano.
                - É... é... pro siô, pade... põe ela lá no artal... com munta frô involta dela...
                Ludgero entendeu que era um adorno para ser colocado no altar mas...  - Ó Meu Deus! 
                Sob o pano, linda, perfeita em cada detalhe, estava Santa Rita em cores,  esculpida em cedro, com o hábito negro, a cruz entre as mãos, rodeada de rosas vermelhas. Era, nos mínimos detalhes, quase vivo, o rosto de Maa’Lita, sem tirar nem por. Mané acabara de expirar.  Pela primeira vez na vida, ele, Ludgero,  livre-pensador e agnóstico, doutor em todas as ciências, professor de línguas mortas, teólogo não alinhado, filósofo encanecido entre livros e pergaminhos, vivido em  lucubrações esotéricas,  chorou copiosamente: Santa Rita tinha os pés avermelhados...            

 
                                                                               FIM